O défice, o desencanto, o fim

 

icon-mota-torres-opiniao-forum-fn-c-2Terão decorrido já uns bons seis anos desde que, arregalados, revoltados, perplexos, não conseguíamos, nem queríamos, calar a indignação face ao modo brutal, desregrado – desumano mesmo – e cruel com que as instituições europeias decidiram responder à chamada crise das dívidas soberanas impondo, sem rebuço, austeridades, cortes, sacrifícios e punições que, com todo o cortejo de dramáticas consequências para o povo grego, para as suas vidas, para os seus presentes e para os seus enegrecidos e desesperançados futuros, não pode ter deixado de o marcar de uma forma profunda e sentida, – e sabe-se que, se a memória é curta, exageradamente curta, a história, essa, far-se-á sem hesitações nem constrangimentos -, deixando adivinhar que a tolerância não seja ensaiada e o perdão, se a ele houvesse lugar, um exercício de humanidade inquestionável, incumprível. Também por cá, com nuances na forma embora, mas igualmente penalizadores nas práticas e nos resultados obtidos nos domínios económico, social, financeiro, psicológico e político, experimentamos os apetrechos do sádico castigo que o sistema financeiro impôs e, obedientes, os políticos europeus, tecnocratizados e apoiados por uma excelentemente recompensada clique de eurocratas sem alma, cumpriram com zelo na defesa dos seus insaciáveis interesses e do cumprimento dos, por definição egoístas, objectivos dos seus mandantes.

À Irlanda chegou também.

E ao Chipre.

Faziam-nos crer que, em vias de… estavam a Espanha e a Itália e, desta forma, induzir-nos o sentimento interiorizável de que, todos na berlinda, eramos todos iguais e a UE a todos tratava por igual. A Europa da coesão, da solidariedade, da carta social europeia, dos cidadãos… a Europa da confiança e do futuro era empreendimento a manter e a acalentar, mas todos (?) estavam sujeitos aos purificadores castigos pelos incumprimentos a que teriam cedido. Sem cinismos, percebeu-se, e por muitas e poderosas razões, que aqueles dois países não eram escrutináveis para efeitos de resgates; que apenas os mais pequenos, os mais débeis, poderiam ser usados, quais ratinhos de laboratório, para tão nefandas experimentações. Que não terminaram, como se tem visto.

É neste quadro que, pelas mãos de dois jornalistas de investigação do Le Monde, num livro intitulado, “Un président ne devrait pas dire ça…”, – “Um presidente não deveria dizer isso…” – é atribuída a François Hollande, sem que, até agora, tenha havido qualquer desmentido por parte do próprio, a contratualização deste com responsáveis da Comissão para que a França, ao contrário do que acontece com outros estados membros, não tivesse de cumprir as metas estabelecidas para o défice, sendo expressamente referenciados como partes no acordo o comissário Moscovici e os presidentes da Comissão: Durão Barroso (anterior) e Jean Claude Junker (actual).

Muito está contado neste livro, a que só a pequenos excertos tive acesso, mas, para o que neste caso interessa, e em síntese, segundo o mesmo, as autoridades francesas deveriam, mentindo, dizer que cumpririam o défice de 3%, e a Europa, a Comissão, fingia acreditar sabendo que tal se não concretizaria, mas ganhando “legitimidade”, força e alma para exigir a outros, como a Portugal, o cumprimento rigoroso do défice imposto…

Face à concretização, previsível, de resto, do francês borreganço, Junker já tinha dito, e todos o ouvimos afirmá-lo, que “a França é a França”, sugerindo, desta forma, que aos gauleses, no topo da sua dimensão, importância e relevo, tudo é consentido e premiado. De acordo com o agora revelado, está – esteve e estará – tudo em linha com o previsto e combinado e, fatalmente, como sempre, “quando o mar bate na rocha…”.

Ontem, uma funcionária da Comissão Europeia, em reunião com os jornalistas, porventura por causa do badalado livro, sobre o mesmo não se pronunciou, e fez bem, mas não resistiu a terminar a conversa dizendo, ligeira, que, na União Europeia, todos os estados membros são tratados de forma igual. Estamos entendidos!

Mas, interrogo-me, a União Europeia sobreviverá a isto?

É esta mesma UE que ignora a crise dos refugiados e mantém, face a todos os dramas dela resultante, uma olímpica indiferença; a mesma que adopta uma ininteligível forma de estar na política externa, que não quer tornar comum, com os resultados desastrosos que se têm visto nos planos diplomático, geopolítico e geoestratégico; a mesma que, pretendendo-se securitária e reagindo em conformidade, não discute uma política comum de defesa; a mesma que se vai soltando de si própria, deixando entreaberta a porta do seu fim, por ter perdido o projecto, a ideia, os elementos aglutinadores, as causas motivadoras, os incentivos impulsionadores, o sonho, a utopia; a mesma que facilita e parece apoiar sistema fiscais diferentes, uns mais atrativos do que outros, – Junker que o diga -, em vez de, como seria de aplaudir e incentivar, promover o desejável debate sobre a tendencial harmonização fiscal nos países membros da UE; a mesma que, com consciência perfeita de que é isso que está a acontecer, se contenta em sobreviver da distribuição de fundos, os estruturais e os outros, ficando reduzida ao que vale traduzida em numerário, sem nada significar face ao que pareciam ser os seus mais nobres desígnios: consolidar a paz e garantir o progresso social e económico dos países que a integram, procurando promover esses valores no concerto das nações.

A União Europeia encarregou-se de, cada vez com mais dificuldade de locomoção, deixar amplificar e aprofundar a doença degenerativa que a mina. Será que, apesar disso, e face ao que vai acontecendo por esse mundo fora, a União Europeia sobreviverá?

Nota:

O autor deste texto, por vontade própria, escreve de acordo com a antiga ortografia.