O sentido da vida

Irene-Lucília--icon

Um homem dorme num vão de escada que vai dar ao mar. Ali preparou um espaço para iludir a casa que não tem. Envolveu o alto corrimão com um lençol esburacado, pendurou um kispo num cabide partido, arrumou num canto uns baldes e pratos de plástico, rudimentar baixela que respigou do lixo. Não diz felicidade, mas continua a viver. Encontrei-o há dias, algures, durante uma caminhada por uma zona marginal. Circula pelas ruas da cidade, há sempre alguém que lhe dá um pão ou uma moeda, que se fecha na contracção duma não declarada repulsa, que esconde também um sentimento legítimo de comiseração.
Felicidade é a palavra usada para definir o que mais se deseja na vida, é a meta decisiva que justifica a luta permanente que cada um de nós trava com o tempo em que decorre a existência, desde que se toma consciência de que há uma medida a conquistar a que vulgarmente chamamos futuro. O futuro corresponde sempre à ideia de Felicidade. Mas este estado não tem o mesmo significado para todo os indivíduos, nem se define pelo mesmo sentido da vida. O sentido da vida não se projecta apenas num futuro, mas designa o que se pode obter no dia a dia, através das capacidades de decidir, de fazer, de acolher ou de aceitar. Tendo em conta que as oportunidades são variáveis, cada um terá que encontrar o seu sentido único, possível e irreprodutível que se esconde em cada situação que a vida lhe apresente. Esta é a melhor atitude para superar situações adversas, o que na recente ciência da Logoterapia, se considera transformar a adversidade em “triunfo humano”. Eu diria, fora dum contexto técico, transformá-la em dignidade humana.
O que se pode pensar de um sem tecto que dorme num canto de rua, que se faz acompanhar por dois cães, parceiros de itinerância, escudeiros responsáveis pela sua segurança e seus magros pertences, guardas fiéis do seu sono e dos seus silêncios ? E do ermitão de Montesinho que armou uma tenda na serra. São duas horas para lá chegar. Plantou nabiças e salsa num metro quadrado de terra onde colocou uma pedra, para lembrar-se de que um dia poderá erguer ali uma casa com as rochas da montanha. Vive pacificamente, meigo animal tranquilo. Sem revolta, nem ferocidade. ?
Não pretendo falar das culpas duma sociedade egoísta, açambarcadora, criadora do supérfluo e do desperdício. Esta é uma evidência que toca o nosso reparo e sentido crítico. Neste momento interessa-me considerar o poder de resiliência que alguns dos sobreviventes desta sociedade afirmam, conseguindo viver com tão parcos haveres, expondo o seu padrão de vida, aquele que lhe é possível, apesar do que lhe é negado, tendo em conta a dignidade de se revelarem tal como são, carentes mas honestos, sofredores mas pacíficos. Donde lhes vem essa capacidade de aceitação.? Não, com certeza, da cobardia ou do despudor, mas por tentarem configurar o destino usando valores de atitude e uma razão de liberdade que lhes confere o seu direito à vida.
Recordo aqui o extraordinário documento da cineasta belga, Agnés Varda, que realizou em 2000 o filme documental “Os respigadores e a respigadora”, os que vivem das sobras dos lixos. Ela própria se envolveu nessa tarefa, e refere quanto enriquecedor foi esse envolvimento com pessoas de quem obteve exemplares lições de vida e de humanidade. Este filme, pelo seu potencial emocional e ético, representa um alerta para os partidários do consumismo , que somos afinal todos nós, os defensores da Felicidade.
Para Victor Frankl , o criador da Logoterapia, a vontade dirigida para a ideia acabada de felicidade, prazer ou sucesso, afasta-nos muitas vezes do sentido da vida. O sentido da vida, diz, “não é uma máxima uniforme válida para todos. É a obrigação que cada um tem de transcender-se.” Passa pelas atitudes da coerência, dum propósito, duma escolha pessoal ou duma aceitação positiva da realidade.

Outubro, 2015