Porque é que as levadas devem ser património mundial?

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Foto retirada do site http://www.visitmadeira.pt/

O Partido Ecologista ‘Os Verdes’ apresentou no dia 5 de fevereiro, na Assembleia da República, um projeto de resolução que defende a candidatura das levadas da Madeira a Património Mundial da Humanidade, junto da Unesco. Considera que o Governo da República deve apoiar e incentivar o Governo Regional Madeira para que o processo seja reiniciado.

‘Os Verdes’ argumentam que as levadas “são uma das joias culturais” da Região, “peça notável e invulgar da história da relação do ser humano com a água, como bem comum e essencial à vida”, caraterísticas que lhes conferem “uma dimensão universal e um valor excecional”. A propósito, o Funchal Notícias colocou algumas questões e procurou respostas, com base na pesquisa que efetuou.

  • Há quanto tempo teve início a construção de levadas?

A construção das primeiras levadas iniciou-se com a colonização da ilha, no século XV, quando a água se tornou necessária para irrigar as plantações, nomeadamente de cana-de-açúcar e para funcionamento dos engenhos e moinhos.

  • Onde nascem as levadas?

Podem nascer num vale, no leito de uma ribeira. Mas há outras que surgem em galerias no interior das rochas.

  • Quem iniciou a construção dos canais?

Inicialmente foram construídos nas zonas mais ricas, até aos 300m de altitude. A construção partiu de homens abastados, donos de nascentes e terras. Quando tinham água em excesso vendiam a colonos e rendeiros. Também foram mandadas construir pelos heréus, ou seja, agricultores que eram donos de parte da levada e que elegiam entre si uma comissão com o objetivo de cuidar da sua manutenção. A Levada do Moinho, que percorre a Lombada e termina no Lugar de Baixo, na Ponta do Sol, é ainda gerida por heréus. Entre abril ou março, antes da época de maior regadio, reúnem-se no adro da Igreja da Lombada e elegem uma comissão. Acordam o que cada um terá de pagar ao levadeiro, o trabalhador que cuida da manutenção da levada e de fazer cumprir o giro. Cada heréu paga consoante o que produz e a extensão de terra que possui.

  • O que o significa ‘água de giro’?

A água é dividida pelos regantes consoante a extensão das terras que possuem, o que também determina o tempo de rega. Como a água ‘passa’ por várias propriedades, é estipulado previamente, para cada uma, o dia, a hora e duração da rega. O ciclo, giro, repete-se entre os regantes.

  • Quanto começou a intervenção do Estado na construção?

Com o aumento da área cultivável foi necessário fazer outro tipo de captações e uma maior aposta na construção das levadas. Era preciso trazer a água do norte da ilha, onde existia em maior abundância, para o sul, o que implicou grandes obras e custos.

A intervenção do Estado tornou-se efetiva na primeira metade do século XIX. A Levada Velha do Rabaçal foi a primeira a ser construída com dinheiro do Estado, exatamente com o objetivo de canalizar a água para o sul. A obra teve início em 1835, mas só terminou em 1860 por dificuldades técnicas e financeiras. A intervenção do Estado fez-se sentir com maior intensidade a partir de 1947, com a Comissão Administrativa de Aproveitamentos Hidráulicos, sob a presidência do eng. Manuel Rafael Amaro da Costa.

Na altura já existiam cerca de 200 levadas, com uma rede de canais que atingia os 1000 quilómetros. Entre 1947 e 1967 construíram, com apoio da engenharia, mais 400km de canais e a água foi aproveitada para produção de energia, sendo edificadas quatro centrais hidroelétricas. A montante das centrais, próximo dos 1000m foram construídos 100km de canais, dos quais 20km são em túnel.

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  • Que processos de construção eram utilizados?

Inicialmente eram canais escavados na rocha e quando não era possível, pela sua dureza, utilizaram calhas grossas em madeira de til e barbuzano. Depois foram construídas em alvenaria. Os rocheiros, nome porque eram conhecidos os construtores de levadas, enfrentam vários perigos, desde o desprendimento de rochas, à queda no abismo. Nas zonas onde não era possível passar eram metidos em cestos, amarrados por cordas às árvores ou à rocha. Muitos morreram. Com o tempo os processos alteraram-se profundamente. Mais recentemente, foi utilizado o betão armado e ciclópico e na abertura de túneis de captação de água usam-se também explosivos.

  •  Sabia que os construtores de levadas se tornaram famosos?

A fama de grandes construtores atravessou o oceano e Afonso de Albuquerque, governador da Índia entre 1508 e 1515, concebeu um plano para conquistar o Egito. A ideia era levar os homens que trabalhavam nas levadas, desviar o curso do rio Nilo e deixar o Cairo sem água, mas D. Manuel não concordou.

  •  A água ainda corre em levadas muitos antigas?

Existem levadas muito primitivas, como A Levada do Piornais, Levada do Curral e Castelejo. Com o tempo outras se seguiram: Levada Velha/ Nova do Rabaçal, Levada Nova, a Levada do Norte que abasteceu o Campanário, a Quinta Grande, o Estreito e Câmara de Lobos; a Levada Nova que irrigou os campos de Machico e Caniçal; a Levada dos Tornos que beneficiou a zona Oriental do Funchal, Caniço, Gaula e Santa Cruz.

  • Que extensão têm hoje?

Os dados sobre a extensão dos canais de irrigação são hoje imprecisos, na medida em que alguns são privados (sem inventário) e outros estão a cargo da administração pública. A IGA, Investimentos e Gestão de Águas, efetuou um cadastro sobre a água de rega que data de 2007.

Para maior precisão há especialistas que consideram que é necessário definir o conceito de levada: é canal de transporte de água até ao ponto de entrega aos reservatórios? (zona de montanha). Ou é canal de transporte de água até aos consumidores finais? (zona urbana). Entre uma definição e outra existem 1000km de diferença. Há por isso quem estime que o comprimento total de canais, levadas e outros atinge na Madeira os 2500km.

  •  A construção das levadas foi sempre pacífica?
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Foto retirada do site http://madeiratravelnews.com/

A água, pela sua importância, foi geradora de conflitos. Nos primeiros tempos foi alvo de especulação por parte de quem a detinha. O Estado, quando implementou a construção de levadas, tomou conta de muita água de particulares o que nem sempre foi pacífico. Em maio 1963, a Comissão de Aproveitamentos Hidráulicos pretendeu desviar a água da Ribeira da Ponta do Sol para a Levada Nova. Essa decisão implicava a desativação da Levada do Moinho, que os lavradores passassem a regar de noite e o aumento do preço da água. Os heréus da Levada do Moinho revoltaram-se e vigiaram a levada até agosto. A situação colocou frente a frente a população e as autoridades, acabando em tragédia quando uma bala de um polícia atingiu a Sãozinha, uma moça da Lombada da Ponta do Sol.

  • Existem levadas em construção?

Atualmente não existem, só se fazem trabalhos de reparação.

  • Que potencialidades oferecem?

Para além de ‘levar’ a água aonde é necessária, as levadas são muitas vezes ladeadas de uma vereda que permite a realização de inúmeros percursos a pé. Oferecem a turistas e residentes a possibilidade de contactar com a natureza e descobrir a beleza das paisagens, o interior da ilha. Um inquérito realizado, entre 7 de dezembro de 2009 e 4 de janeiro de 2010, revela que 37% dos turistas que visitam a Madeira têm como principal motivação o contato com a natureza.

Pela sua importância económica, social e ambiental as autoridades regionais definiram para a Madeira, em agosto de 2010, 25 percursos pedestres, dos quais 4 são em veredas e levadas e 9 exclusivamente em levadas.

A grande procura coloca no entanto questões ambientais. Muitas levadas atravessam áreas da Floresta Laurissilva, classificada como Património Natural da Humanidade pela Unesco, por isso torna-se necessário a monotorização da capacidade de carga.

  •  A candidatura incluirá todas as levadas?

Naturalmente que nem todas as levadas ficarão incluídas. Deverão ser selecionadas algumas, de acordo com conceito de património e com outros critérios que venham a ser definidos. Poderão atender ao facto de percorrerem zonas de Floresta Laurissilva, se permitem percursos pedonais e relação com a paisagem agrária.

  • O que revela o tempo sobre as levadas e os madeirenses?

 A Madeira que hoje conhecemos era bem diferente daquela que viram descobridores e colonizadores do século XV. Habituámo-nos a ver, encosta acima, os tradicionais poios, encaixados nos mais exíguos recantos, a desafiar os abismos e parece que sempre ali estiveram. Esquecemo-nos que a paisagem que hoje que deleita residentes e turistas foi construída por homens anónimos ao longo dos tempos, pedra a pedra, subindo e descendo montes e vales, arriscando a própria vida.

Quando a terra faltava, levavam-na às costas em cestos. A tarefa de construir não terminou aqui. A água em abundância corria desregrada muito mais no norte do que a sul. Havia por isso que encaminhá-la, atravessando montanhas, perfurando a rocha até onde era necessária. E foi assim, com instrumentos rudimentares, dependurados por cordas, metidos em cestos que os madeirenses lançaram mãos à obra e construíram os canais de irrigação que serpenteiam a ilha: as levadas, que irrigaram os canaviais, a vinha, que moveram as pedras dos moinhos. Durante séculos foram sendo construídas até aos nossos dias, com apoio da engenharia. Fazem por isso parte da identidade de um povo laborioso, da história da ilha.

 Bibliografia consultada:

Raimundo Quintal, Levadas da Madeira – Caminhos da Água, Caminhos de Descoberta da Natureza, http://www.jardins.com.pt/wp-content/LevadasdaMadeira.pdf

Idem, Monumentos criados por heróis anónimos, http://ucdigdspace.fccn.pt/bitstream/10316.2/26345/1/Rualarga37Artigo9.pdf