Surdo, mas é dos olhos

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À primeira vista, este título é disparatado, pois, nem de propósito, são confundidos os órgãos dos sentidos.

Recolhi-o na farmácia, lugar onde, entre a espera e o balcão, flui a vida real. Histórias diversas, umas tristes, outras retratos cruéis, ali contadas sem recato, enquanto se avia a receita ou se pede um remédio adiantado, porque a data da consulta está distante ou nem sequer foi ainda confirmada.

Nesse dia, faltou papel à maquineta que dispensa as senhas numeradas para o atendimento. Então, os clientes concentraram-se junto à porta e vigiavam-se mutuamente não fosse alguém desrespeitar a sua vez. De facto, aconteceu. Um casal, recém-chegado, fez-se desentendido, abeirou-se do balcão e, quando a ajudante de farmácia disse em baixa voz “quem está a seguir”, logo um deles pediu o que desejava.

Como é natural, os protestos chegaram. A empregada pediu calma e, insistentemente, repetia que chamara pelo seguinte e que ninguém se havia aproximado. Os que esperavam retorquiam que nada tinham ouvido. Até que um deles, mais exaltado, insistiu nos seus direitos, gritando: “eu sou surdo mas é dos olhos”.

Logo guardei a frase na memória até registá-la no bloco de notas. Na sua simplicidade, o homem queria apenas dizer que ouvia bem e, por certo, estava também atento. Mas o trocadilho entre a visão e a audição não é assim tão ingénuo.

Sentamo-nos frente ao televisor para assistir aos noticiários. Vemos e ouvimos. Há declarações que retemos. Algumas, pela frequência com que são debitadas, mais fortemente se fixam na memória. Passado algum tempo, os mesmos protagonistas dão o dito pelo não dito e asseveram que tais afirmações não foram suas, mesmo quando confrontados pelos jornalistas ou as gravações de arquivo.

Chamamos-lhe de vira-casacas. Poderíamos também dizer-lhes que “somos surdos mas é dos olhos”. Contudo, o aparelho de televisão não lhes transmite os protestos do sofá.

Em Portugal, falta coerência ao discurso político, problema com consequências graves na opinião pública. A descrença política e a desconfiança nos partidos são fatais para o sistema democrático.

No entanto, esta questão do dizer hoje e desdizer amanhã torna-se mais grave quando se trata da palavra escrita. Neste caso, há sempre a possibilidade de conferir o que alguém escreve hoje com o que escreveu ou a imprensa reproduziu, sem desmentido, no passado.

Mudar de opinião é legítimo. Até é manifestação de inteligência. Agora tentar limpar o passado com um discurso lixívia no presente, já é caso para repetir aquelas sábias palavras do homem que na farmácia protestava por duvidarem da atenção que pusera no respeito da sua vez.

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