Recentemente, no mês de Maio passado, com a publicação do primeiro livro sobre “Agrobiodiversidade, variedades regionais da Madeira” conhecemos através do Banco de Germoplasma da Universidade da Madeira, a perda de cerca de 26 variedades de trigo regional e a lentilha de Porto Santo. Mas a perda de agrobiodiversidade não acontece apenas nas culturas, acontece também com a perda de genótipos locais no gado da Região. A Madeira não tem nenhuma raça de gado, oficialmente reconhecida a nível nacional, ao contrário do arquipélago dos Açores onde existem 5 raças autóctones reconhecidas e uma raça de gado bravo, em processo de reconhecimento. No arquipélago vizinho de Canárias são 16 as raças autóctones oficialmente reconhecidas.
Não é porque no Arquipélago da Madeira não existam raças com potencial de reconhecimento e registo, o que acontece é que o gado da terra sempre foi considerado de menor valor e importância relativamente às raças estrangeiras importada, mais produtivas. Na primeira metade do século XX o militar Alberto Artur Sarmento, na sua publicação de 1936 “Mamíferos do Arquipélago da Madeira” fala sobre o “gado grosso” da região. Além do gado cruzado, existia ainda a raça de vaca da serra, o gado manadio que sobrevivia sem a ajuda dos pastores aos piores invernos nas serras Madeirenses, o chamado gado Terrantez. Existia ainda o gado bovídeo da Ilha de Porto Santo, uma raça vermelha-arruivada e o gado Maneiro ou Alvação das freguesias do oeste da Madeira, considerada uma sub-raça local de menor estatura e pelagem clara. No entanto, todas estas raças da região perderam-se devido aos muitos cruzamentos com raças estrangeiras, que ocorreram ao longo dos anos.
Como bons exemplos de recuperação de raças existe o Burro Anão da Ilha Graciosa, nos Açores ou o Burro Majorero das Ilhas Canárias. Pelo contrário, do Burro do Porto Santo, antigamente utilizado para trabalho no campo, restam apenas 5 animais na ilha, demasiado velhos para reprodução, de acordo com a opinião técnica da veterinária local e, aparentemente, apenas 1exemplar na Madeira, mais propriamente na Quinta Pedagógica dos Prazeres, na Calheta e, portanto, prestes a desaparecer. Afortunadamente, no caso da raça canina do Podengo do Porto Santo está em curso um projeto para a sua recuperação.
O porco da serra da Madeira, descendente dos antigos suínos introduzidos pelos primeiros povoadores, seriam arraçados dos javalis selvagens introduzidos pelos antigos Capitães Donatários do Funchal, que os traziam das praças militares Portuguesas do norte de África para a caça na Madeira. Segundo o militar A. A. Sarmento já não existia no século XX o javali selvagem na Madeira, mas ainda existiriam porcos da serra que, acabariam abatidos ou dizimados pelo surto de peste suína, ocorrido em 1978. Após 1980 restaram poucos exemplares e os que atualmente existem no Posto Agrícola das Queimadas, em Santana, correm o risco de desaparecer devido, mais uma vez, aos excessivos cruzamentos novos com animais importados, durante os últimos anos.

É com certeza no gado caprino e ovino da região (gado “miúdo”) onde, ainda hoje, podemos encontrar os genótipos dos animais que existiam desde os tempos dos primeiros povoadores. Segundo o Relatório Veterinário de João Tierno de 1896, no caso da ovelha da serra madeirense aconteceram algumas importações de raças inglesas para melhoramento. Também A. A. Sarmento, no seu livro, escreveu sobre a importação da raça Southdown para a Serra do Poiso e ainda sobre a importação da raça Merino. O veterinário J. Tierno faz ainda menção ao chamado “gado mouro”, mas, estes ensaios, não terão deixado vestígio no gado de lãs crespas da serra, pelo que atualmente e havendo vontade da Secretaria Regional da Agricultura e Desenvolvimento Rural, mediante estudo técnico qualificado, a ovelha da serra teria ainda viabilidade para ser reconhecida oficialmente como raça autóctone da Região Autónoma da Madeira.
Por último, o gado caprino, sempre menos valorizado e objeto de perseguição ao longe dos séculos.
Diferentes autores referem a introdução, desde os tempos dos primeiros povoadores na Madeira, de gado caprino do sul de Portugal, nomeadamente da região Algarvia, de acordo com fontes históricas. Gaspar Frutuoso na sua obra “Saudades da Terra” menciona a existência na Madeira de escravos vindos de Canárias, que se terão revoltado e fugido para as serras da ilha onde mantinham cabras e porcos à solta, tal como faziam na sua terra de origem. Por esse motivo, estes escravos canários e os seus gados asselvajados foram alvo de perseguição, pelas autoridades daquele tempo, na Madeira.
Certamente, dada a referência histórica mencionada por G. Frutuoso nas “Saudades da Terra” sobre a compra de “bodes bravos de Canárias” para soltar nas Ilhas Desertas, que a antiga raça de cabras bravas das Canárias foi introduzida na Madeira. Referido também por A. A. Sarmento, no seu livro de 1936, não apenas no sub arquipélago das Desertas e na Selvagem Grande, mas também na Ilha da Madeira, as cabras de Canárias terão sido introduzidas pelo que, a base genética do gado caprino regional seria constituída por antigos genótipos do sul de Portugal e de Canárias.
Para a Deserta Grande e para o Bugio não foram encontrados dados que revelassem a existência de raças diferentes de cabras para as duas ilhas para o período anterior ao século XIX, sendo precisamente a partir da segunda metade desse século e início do século XX que se podem encontrar evidências sobre a descrição de duas raças diferentes de cabras ferais para as Ilhas Desertas, nomeadamente nos noticiários desportivos ingleses (Illustrated Sporting and Dramatic News), em livros como “Through Angola a Coming Colony” e “Madeira Old and New” que relatam as crónicas dos caçadores europeus, aos quais eram oferecidos, pelos donos das Desertas (irmãos Cossat and Mr Hinton ) grandes caçadas de cabras bravas e lobos marinhos durante a sua estadia no Funchal, antes de prosseguirem a sua viagem de caça para o continente africano.
Dolf Willard no seu artigo publicado em “Country Life Illustrated” Volume 6 (1897 ) “Goat shooting in Madeira” disse sobre as populações de cabras da Deserta Grande e do Bugio: “As cabras da Deserta Grande são de cor castanho-ferrugem com cabeça preta e marcações no dorso e ombros. Por vezes surge uma cabra cinzenta, mas são raras, e a grande raça preta do Bugio tem-se tornado tão escassa, devido à seca de 1896 e 1897, que as caçadas naquela ilha terão provavelmente de ser interrompidas durante dois ou três anos”
O Coronel JB Statham no seu livro “Through Angola a coming Colony (1922) Capitulo 1 “Wild goats of the Desertas”, disse: “No Bugio existem grandes cabras pretas com chifres de até 2 pés de comprimento. As da Deserta Grande são mais pequenas tanto na cabeça como no corpo, sendo maioritariamente de cor acastanhada. Houve, em tempos, ovelhas selvagens na ilha, mas a última delas foi abatida há quase cinquenta anos. O Ilhéu Chão, a menor das ilhas, não tem cabras, mas apenas lebres belgas e alguns gatos, nomeadamente a descendência de gatos de navio, encalhados em naufrágio.”
William Henry Koebel autor de “Madeira Old and New” (1909) sobre as cabras da Deserta Grande e do Bugio diferencia claramente que: “As últimas (Cabras pretas do Bugio) são de tamanho muito maior do que as da Deserta, e são de cor preta azeviche…”
É bem conhecido o fenómeno do nanismo que experimentam as espécies de animais grandes introduzidas nas ilhas, onde o espaço e a disponibilidade de alimento é limitado. A deriva evolutiva faz que os animais domésticos como cabras e porcos, quando não são submetidos a seleção humana e vivem ferais, voltem ao seu estado primitivo ao longo de várias gerações. No caso das cabras, estas voltam a revelar-se mais semelhantes na morfologia e cor da espécie selvagem Benzoar, o antepassado de todas as cabras domésticas.
A antiga raça brava das Canárias, bem adaptada à vida nas falésias era pequena, a sua cor predominante era castanho, com marcas escuras diferenciadas para o macho e para a fêmea, como acontece no antepassado Benzoar selvagem, o qual manifesta no seu fenótipo, o conhecido “Wild Allele”, patente no genótipo da espécie. Mas isto não acontecia com a raça do Bugio, que era descrita, no início do século XX ainda como uma raça caprina grande. Ao contrário dos caprinos da Deserta Grande, a população do Bugio possuía uma cornadura mais aberta, a garupa irregular e a cor preta, diferente, portanto da antiga raça de caprinos das Canárias. Segundo o Eng. H. Costa Neves, num artigo publicado em 2019 na imprensa regional, a garupa irregular na parte traseira da linha dorsal resulta de uma adaptação à orografia do Bugio, mas está é uma característica que não está presente nas espécies de caprinos selvagens, nem das cabras ferais introduzidas antigamente nas ilhas com orografia íngreme. É antes uma característica ainda presente em algumas raças de caprinos domésticos. Apenas a metade sul do Bugio era viável para a vida dos coelhos e cabras introduzidos. A escassa disponibilidade de alimento e a ausência de fontes de água doce limitava o número de indivíduos da população de cabras e, tal como podemos ler na publicação de Dolf Willard, os períodos muito secos como os ocorridos nos anos 1896 e 1897, foram o motivo de grande mortalidade dos caprinos do Bugio, até ao ponto, dos então proprietários, considerarem não permitir a caça na ilha por restarem poucas cabras.
A explicação do porquê destas cabras ferais do Bugio serem de grande porte e cor preta ainda no século XX, ao contrário da raça pequena da Deserta Grande, que apresentava uma coloração castanha predominante, correspondente aos caprinos que levam séculos a adaptar-se à vida em estado feral, é simples. Muito provavelmente tratava-se de uma população de cabras introduzidas num período não muito anterior ao século XIX, na Ilha do Bugio. As ilhas Desertas foram propriedade da família Cossart desde 1745 e os antigos donos aproveitaram a oportunidade de introduzir uma raça diferente de cabras. O mesmo aconteceu com a ovelha selvagem (Muflão da Córsega) referido pelo Coronel J.B Statham, sendo abatida a última na metade do século XIX. Este autor menciona também a introdução de lebres da Bélgica no Ilhéu Chão. Todas estas novas introduções de animais nas Desertas tinham o objetivo de oferecer maior diversidade de caça aos turistas europeus.
No caso da cabra do Bugio, os animais apresentam semelhanças com uma população de cabras ferais de cor preta, que existem na Ilha Europa no canal de Moçambique e que foram introduzidas de África.
Nesta ilha, território ultramarino Francês, desde há dois séculos que esta população de cabras pretas tem sido observada a beber água salgada na costa, o que revela que alguns caprinos são capazes de tal adaptação, sem danos.
Mas para falar com propriedade e decidir se alguma das populações de caprinos da Madeira tem realmente importância e potencial para ser reconhecida oficialmente como raça autóctone ou não, são precisos estudos genéticos. Em declarações emitidas pelo Vice-Presidente do Instituto de Florestas e Conservação da Madeira, o biólogo Paulo Oliveira, para o canal de televisão regional, em 2019, foi revelado que “foram feitos testes genéticos” aos caprinos das Desertas, mas, com certeza, esses testes realizados representaram apenas uma “prospeção” ou um estudo inicial de um número muito reduzido de amostras desses animais. Primeiro foram sequenciadas, com sucesso, duas amostras do Museu de História Natural do Funchal, mediante o recurso a utilização de microsatélites do DNA mitocondrial, do exemplar dissecado (caçado na Deserta Grande) o qual possui o haplótipo exclusivo da raça caprina das Canárias. Mas o mesmo não aconteceu à amostra do Bugio (restos de um exemplar que existiu até 2008, conservado no Museu do Funchal). Posteriormente foram estudadas com sucesso 2 amostras de pelo, enviadas pelo Parque Natural da Madeira, procedentes da Deserta Grande, resultando um haplótipo novo identificado também em 2 outras amostras provenientes das serras da Madeira e da Ilha Terceira. Este novo haplótipo não combina com os haplótipos das raças portuguesas, nem com as raças espanholas (incluindo o haplótipo das Canárias) nem tão pouco com as raças africanas, pelo que é muito provável que este haplótipo seja exclusivo de algumas das populações caprinas da região Madeira-Açores. O resultado é bastante significativo, mas, para assegurar este facto ao nível genético e considerar como raça autóctone da região é preciso o estudo de um número maior de amostras destas cabras, sendo necessário para tal boa vontade e colaboração dos e entre os serviços do ambiente e da agricultura da Madeira.
No documento publicado sobre o Workshop do plano de conservação da espécie endémica Hogna Ingens, realizado em 2016, o diretor do projeto Life Recover Natura, Dr. Pedro Sepúlveda, lembrou às autoridades presentes, o problema da cabra das Desertas e o membro do Comité de Conservação de invertebrados da IUCN, Dr. Axel Hochkirch insistiu com as autoridades locais para o avanço de um novo projeto para fins de controle da planta invasora Phalaris e a erradicação das cabras da Deserta.
Na publicação sobre a espécie vegetal endémica Musschia isambertoi, em 2021, o biólogo Menezes Sequeira disse o seguinte: “Urgentes medidas de conservação são imperativas e devem incluir a proteção imediata com a interdição de toda a área onde se encontra a população desta espécie vegetal e a erradicação da população de cabras da Deserta Grande”.
Sendo, portanto, evidente que para a comunidade científica, de uma forma geral, o objetivo final para a população feral da cabra das Desertas é a erradicação total.
No entanto, apesar de todos sermos conscientes da importância de preservar a Biodiversidade, as espécies endémicas como o Lobo Marinho ou a Muschia isambertoi, é fundamental não esquecer a importância que tem também a preservação da agrobiodiversidade, as variedades das culturas e as raças de gado regionais, incluindo as raças ferais. O gado caprino da Região Autónoma da Madeira tem influências das raças caprinas estrangeiras desde o século XX. O autor A. A. Sarmento referia a raça Anglo-Nubian. Posteriormente encontrámos na Madeira indícios dos cruzamentos com as raças Saanen e Toggenburg. Atualmente existe a importação da raça Boer. É obvio que o fator económico tem sido primordial para os produtores que procuram novos cruzamentos com o objetivo de obter cabritos mais eficientes para a produção de carne, mas a hibridação com novas raças tem conduzido à perda dos genótipos locais, resultando daí a crucial importância de preservar exemplares da população feral das Desertas.
A foto que ilustra este artigo, tirada a partir de um bote mostra um grupo de bodes bravios da Deserta à procura de alimento no chão da Doca, onde estes animais podem ser apanhados sem risco e transportados para instalações dos serviços da Pecuária, onde se proceda a um período de quarentena, devendo existir apenas boa vontade para o fazer
Apanhar cabras e Urzela nas falésias faz parte da história e das tradições do povo Madeirense, recordando os valerosos homens do Caniçal nomeados como os melhores da região nas crónicas, dado o exemplo do veterano chamado Zabrugar (Pareisha) .
Preservar os genótipos regionais melhor adaptados, ao longo de cinco séculos, às condições do meio é importante e constitui uma peça fundamental para planear uma agricultura e pecuária mais sustentáveis a nível mundial, no futuro.
Jose C. Gutiérrez Investigador
Bibliografia:
As Saudades da Terra Frutuoso , G. 1586 – 1590
Mamíferos do Arquipiélago da Madeira – Sarmento , A. A. 1936
Relatório do Veterinario do Funchal ,em 1835 – Tierno J. F. Boletim da Direcçao Geral de AgriculturA, 6 º ano , nº 11 ,1896 . Vetbiblios
Madeira : Old and New , Koebel,W. H. 1909
Country Life Illustrated Volume 6 Goat shooting in Madeira Willard , D. 1899
Illustrated Sporting and Dramatic News Goat and Seal shooting in the Desertas Islands ( 1892 – 1906)
Through Angola a coming Colony . Statham , J.B. (1922)