“Uma bancarrota moral”: abandonados como trapos

A frase que encima o presente texto – “uma bancarrota moral” foi recentemente proferida por Tedros Adhanom Ghebreyesus, director-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), reportando-se à morte de idosos por Covid-19 que se vem verificando um pouco por todo o mundo. Os números, com efeito, não deveriam deixar ninguém indiferente porque são de uma dimensão brutal.

Em Espanha, por exemplo, 60% das mortes por covid-19 ocorreram em lares, enquanto que em Portugal registaram-se 40% das mortes por coronavírus. E de acordo com um relatório do Instituto Superior de Saúde de Itália, que avaliou a percentagem de mortes em lares nos vários países da Europa, tornado público em finais de Junho, em França, as mortes em lares constituem 50% do total registado no país; na Bélgica, 55% e na Escócia, 46,5%.Um pouco melhor, neste indicador, apenas a Alemanha, onde 35% das mortes pela Covid-19 ocorreram em lares de idosos. Ainda segundo o aludido relatório, as principais razões apontadas para esta tragédia são a falta de equipas médicas, falta de material de protecção e dificuldades na transferência de pacientes dos lares para os hospitais.

Por outro lado, de acordo com Carl Heneghen, professor do Centre for Evidence – Based Medicine, em Oxford, em artigo publicado também em Junho, na revista “Spectator”, “o próprio confinamento teve consequências catastróficas. Nas instalações de cuidados a longo prazo com mortes em excesso por covid-19, os investigadores descobriram que as perturbações agudas não eram o problema principal. As mortes foram sobretudo devidas a choque hipovolémico, ou perdas de fluidos”.

Num artigo publicado no “Público” de 14 de Agosto p.p., Susana Peralta, professora de Economia na Nova SBE, citava um estudo publicado igualmente em Junho, escrito por vários autores da Universidade de Telavive, “que conclui que a prevalência de camas em lares e estruturas semelhantes está relacionada com uma maior mortalidade por mil habitantes nos países da União Europeia e nos estados dos Estados Unidos da América, mesmo quando uma percentagem de pessoas com mais de 75 anos é semelhante. Os autores concluem assim que é a própria estrutura do lar, com os seus espaços comuns, quartos partilhados, o facto de cada cuidador ter contacto com diferentes utentes, que potencia o contágio”.

Nesse texto, Susana Peralta aludia ainda a um estudo conduzido no Reino Unido e reportado pelo The Guardian  que “mostra que a probabilidade de um surto num lar com 60 a 80 residentes é vinte vezes maior do que num lar mais pequeno (com menos de 20 residentes)”, sendo que “os lares maiores são precisamente os que prestam cuidados de menor qualidade, segundo um relatório governamental de 2018. Outro estudo recente mostra que os lares californianos com mais qualidade – medida por um sistema de certificação que atribui estrelas aos que cumprem certos critérios – têm menor probabilidade de ter casos de covid-19.”

De acordo com dados actualizados pela Direcção-Geral de Saúde, até 12 de Agosto, morreram 681 idosos internados em lares. Alguns em resultado de tragédias de que a comunicação social se fez eco. Como em Reguengos de Monsaraz, onde morreram 18 pessoas e foram infectadas 162, sendo que, de acordo com um relatório da Ordem dos Médicos, a maioria dos mortos não foi vítima de covid-19, mas de desidratação e agravamento de doenças crónicas, por falta de cuidados básicos.

Pior ainda, verificou-se no Lar do Comércio de Matosinhos, onde morreram 24 utentes com covid-19 e foram infectadas mais de 100 pessoas. Na sua edição de 27 de Agosto último, a revista “Sábado” publicou uma reportagem onde relata que “houve utentes um mês sem tomar banho” e que a Câmara Municipal daquela localidade nortenha fez queixa ao Ministério Público, dado que a 7 de Abril uma vistoria “detectou falhas graves que haviam de ajudar à propagação do surto”. E escassos dias depois, o jornal “Público” revelava que na “Residência do Montepio”, na cidade do Porto – um lar de luxo -, um outro surto de covid-19 fez 16 mortos e 48 infectados. Números que, no início da presente semana, a 7 de Setembro, aquele jornal actualizaria, apontando para 20 mortos e 73 infectados, ao mesmo tempo que registava acusações de falta de material.

Tratando-se de surtos que não ocorreram em simultâneo (há meses a separá-los, entre o do Lar do Comércio e os demais) a imagem que transparece é a de uma “total incapacidade em acompanhar os lares e assegurar que nenhuma instituição ou comunidade fica sem recursos básicos para cuidar de quem adoece”, como anotava a 15 de Agosto no “Jornal de Notícias”, Inês Cardoso, directora-adjunta. Uma preocupação que, de resto, Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, expressou na recente reunião entre técnicos de saúde e responsáveis políticos efectuada na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.  Entretanto, como que a fazer jus ao velho ditado popular – “depois de casa roubada, trancas à porta” -, o governo da República anunciou a criação de 18 equipas de emergência para intervir em lares e a contratação até ao final do ano de 15 mil trabalhadores.

Em 2018, a Comissão Europeia procedeu a uma análise da situação na UE em matéria de cuidados continuados. O relatório sobre Portugal traça um quadro negro. Que Susana Peralta, no texto que temos vindo a citar, resume assim: “Portugal não tem uma estratégia de longo prazo para lidar com os custos do envelhecimento. Os cuidados a pessoas dependentes continuam a ser entendidos como uma obrigação das famílias, o que faz com que a maior parte sejam informais e recaiam sobre as mulheres. À data, não havia protecção legal nem apoio financeiro para estas pessoas. A provisão pública deste tipo de serviços é escassa. As taxas de acesso são baixas em todo o país. Portugal é o país da OCDE em que a maior percentagem do custo deste tipo de cuidados é suportada directamente pelos utentes. O sector enfrenta desafios ao nível da qualidade dos serviços. Os funcionários têm baixas qualificações e falta de formação. O estatuto e a remuneração dos empregos no sector não são atractivos. Talvez por isso, Portugal tem um défice de trabalhadores formais nesta área: 0,4 por cada 100 pessoas com mais de 65 anos comparando, por exemplo, com 17,1 na Noruega. O relatório afirma que a ausência de trabalhadores formais em cuidados continuados em Portugal resulta na exclusão de mais de 90% da população idosa de serviços de qualidade. Da extensa lista de prenúncios de tragédia que li, só uma foi, entretanto, resolvida – a inexistência do estatuto de cuidador informal, finalmente legislada em Setembro de 2019.”

E o negrume do quadro acentua-se, se atendermos a que Portugal é o 5º país mais envelhecido do mundo, apenas atrás de Japão, Itália, Grécia e Finlândia, prevendo-se que até ao final desta década tenha subido à 3ª posição. Como recordava Miguel Sousa Tavares, no semanário “Expresso” de 29 de  Agosto, “em 1950, 7% da população portuguesa tinha mais de 65 anos, hoje são 23% com idade média acima dos 40 anos, a segunda mais alta da Europa, e será de mais de 50 anos em 2030. A esperança de vida das mulheres está hoje nos 85 anos e estará até final do século acima dos 100 anos. Paralelamente, temos a mais baixa taxa de natalidade da Europa: 1,3 filhos por mulher, largamente abaixo da taxa de reposição populacional, que é de 2,1”.

Ou seja, “caminhamos a passos largos para que a já terrível equação 1×2 (um pensionista para dois activos) chegue à absolutamente insustentável equação 1X1. Uma sociedade que se tornou economicamente inviável, porque produz 161 velhos por cada 100 jovens, com cada vez menos activos e mais reformados e com custos cada vez maiores para assistir e cuidar dos velhos, que vivem cada vez mais tempo e exigem tratamentos sempre mais caros”.

No auge da tragédia em redor do lar de Reguengos, em declarações à edição de 16 de Agosto do “JM”, Fábio Fernandes, director do Centro Social e Paroquial de Santo António, constatava, reportando-se a um incêndio num canil ilegal em Santo Tirso, que matou dezenas de cães, que “um idoso vítima de maus tratos não origina uma manifestação. Mas, um cão, sim!”. A frase espelha a sociedade que temos.

Uma sociedade que dedica mais atenção aos animais do que aos idosos. Que se indigna com o sofrimento de uns (os animais), mas que reage, em muitos casos, com indiferença perante o sofrimento de outros humanos. Revelador disso mesmo, é a circunstância de uma das autarquias ouvidas, a de  Câmara de Lobos revelar que este ano vai gastar mais dinheiro com os animais do que com os idosos, uma vez que tem orçamentado aproximadamente 113 mil euros para diversos programas nas áreas da actividade física, lazer e acompanhamento social dos idosos, enquanto que, para os animais, o município de Câmara de Lobos reservou mais de 152 mil euros em 2020. Sintomático, é também o facto de mais de metade (seis) das autarquias da Região (Funchal, Santa Cruz, Machico, São Vicente, Porto Moniz e Ponta do Sol) terem optado por não responder à questão colocada pelo referido matutino regional. Quiçá por não a considerarem relevante, ou então para não ficarem mal na fotografia, da insensibilidade social reinante.

No passado dia 1 do corrente mês, o jornalista Daniel Oliveira, colunista do “Expresso”, publicou na edição digital daquele semanário um artigo de opinião intitulado “Velhos e pobres, o que fazemos com os lares?” – que vale a pena ler -, em que descreve nestes termos a realidade dos lares em Portugal: “Entre os utentes dos lares, metade têm mais de 80 anos. Neste momento, há lares a fazer as vezes de cuidados continuados: são hospitais de retaguarda, com doentes acamados, entubados, algaliados e totalmente dependentes. Segundo a Carta Social, cerca de 80% dos utentes dos lares não toma banho sozinho, mais de 75 não se veste sozinho, 60% é dependente na mobilidade e para ir à casa de banho, 60% sofre de incontinência e quase 40% não consegue alimentar-se sem apoio”.

O busílis da questão é que, como sublinha Daniel Oliveira, “se não queremos depósitos de velhos, os custos serão maiores. Somos pobres e temos problemas de ricos. Não temos dinheiro para os lares, mas já não temos as estruturas familiares de sociedades menos «desenvolvidas»”.

Em conclusão, a solução é, convenhamos, “complexa”. Não se compadecendo com o desperdiçar de dinheiros públicos, nem com o seu mau uso. Temos, necessariamente, de fazer opções. Não podemos, por exemplo, continuar a derramar dinheiro na banca que depois faz falta em áreas sociais tão diversas, como a saúde, a educação, a habitação, a protecção social. Temos de fazer opções em função do bem comum!

 

 

  *  por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

 

Post-Scriptum:

1) Obrigado, Vicente! : pela enorme marca que deixas no jornalismo em Portugal. Por teres transformado o “Comércio do Funchal” num semanário avidamente lido no país e no estrangeiro. Pelos projectos inovadores da revista do “Expresso” e do “Público”. Por nunca teres pactuado com a mediocridade, pela tua lucidez e pelo teu permanente espírito crítico. Pelas tuas gargalhadas irresistíveis. Até sempre, meu caro!

2) Empavonamento: A criatura que se auto-intitulava de “único importante” não se cansa de enaltecer o suposto milagre da sua governação. A realidade nua e crua do enorme risco de pobreza vigente desfaz sem honra nem glória tanto auto-panegírico.

3) Álcool: 230 condutores detidos em 6 meses é obra. A conhecida “Ilha da Aguardente” continua a não deixar os seus créditos por mãos alheias!

4) Tachos: o partido do Tuk-Tuk (CDS) não desiste de assegurar aos seus ex-deputados lugares bem remunerados. A avaliar pelas últimas colocações só falta contemplar um ex-secretário-geral. Que bonita, a solidariedade democrata-cristã!

5) Faltas: de camas, de macas e de aparelhos de Raio X a funcionar. Assim vai o auto-proclamado “melhor serviço de saúde do país”.

6) “Kafkiano”: foi nestes termos que o bispo emérito classificou o processo que condenou o seu ex-secretário pessoal, Frederico Cunha. Vá lá, desta feita, não comparou o julgamento ao de Jesus Cristo!

7) Reprise: o folhetim da hipotética candidatura presidencial com origem na ilha repete-se. Tal como há 5 anos, com a criatura que ameaçou e depois desistiu, o sucessor não ata, nem desata. Pelo meio avança com um caderno de encargos que não são competência de um Presidente da República. Vá lá, tenha ou menos a coragem que faltou ao seu antecessor.