A religião e a tolerância

  1. O pensador Adam Smith, autor do famoso livro «A Riqueza das Nações», entre os vários temas que vai explanando no livro, toca também a religião. A religião é considerada importante, serve para a tomada de consciência da liberdade e se não existir apenas uma religião nas sociedades, melhor será para a prática da tolerância. Defende a ideia de que «enquanto houver muitas igrejas diversas numa sociedade haverá menos fanatismo e maior espírito de tolerância». A variedade religiosa é benéfica para os povos. Às vezes inquietamo-nos com esse desafio, mas pelo que se vê, parece trazer benefícios.
  2. É curioso este pensamento e interessante. Embora se deva reconhecer que de um defensor das liberdades (considerado um dos mais valorosos pensadores liberais) seria inaceitável outra forma de conceber a religião, isto é, não considerar e promover a liberdade religiosa. Porém, a par desta ideia, ele manifesta-se contra a prática do dízimo que algumas instituições religiosas fazem vingar como preceito principal aos seus fiéis.
  3. A Igreja Católica há muitos anos que deixou esta prática e melhor ainda deixou de falar nas indulgências em troca de bens materiais. Convém lembrar que esta prática foi o cavalo de batalha dos protestantes no séc. XVI particularmente, Martinho Lutero. Hoje, a Igreja Católica às vezes fala em «indulgências plenárias», mas apenas e só em termos de bênçãos espirituais sem que isso implique contrapartidas de bens materiais como acontecia no passado.
  4. É bem verdade que estou de acordo com a multiplicidade religiosa, ainda mais sabendo que essa variedade contribui para tolerância, esbate o fanatismo e promove a assunção da liberdade dos indivíduos nas sociedades. Mas, na última metade do séc. XX e inícios do séc. XXI surgiu uma variedade de movimentos religiosos (as denominadas seitas religiosas e grupos carismáticos profundamente reacionários e conservadores) que foram retirando fiéis às confissões religiosas tradicionais, quer à Igreja Católica, quer às confissões protestantes que surgiram no séc. XVI. É curioso repararmos que todos estes novos movimentos religiosos (particularmente as seitas religiosas) praticam o dízimo. É a sua principal fonte de receita.
  5. O dízimo verdadeiro correspondia a um dia de trabalho que cada fiel entregava à sua agremiação religiosa. É óbvio que os movimentos religiosos deturparam esta prática e seguramente exageram na exigência que fazem aos seus fiéis e o dízimo deve corresponder a vários dias de trabalho a cada fiel por ano, que assim contribuem para que o poderio patrimonial de muitas seitas religiosas seja hoje tão astronómico. Basta estar atento aos templos faraónicos que se levantam por esse mundo fora, especialmente em países muito pobres. Também é relevante a aposta que fazem em órgãos de comunicação social poderosíssimos para anunciarem a sua doutrina quase em exclusividade.
  6. O dízimo, realmente concordando com Adam Smith, é uma prática obscena. Sim, é boa a multiplicidade religiosa se se prova que essa realidade contribui para a tolerância. Eu creio sim que traz benefícios, porque se a sociedade está afunilada ou é monocolor mesmo até em termos religiosos, arrasta uma série de condicionantes, que fazem desrespeitar os outros e deixam de existir as liberdades, porque emerge o fanatismo cruel. A concorrência em todos os quadrantes das nações é boa para os consumidores e a liberdade religiosa é um bem que deve ser salvaguardado sempre.
  7. Por isso, a chamada de atenção de Adam Smith, veio despertar-me para estes dois dados curiosos. Primeiro, a ideia de que a multiplicidade religiosa é benéfica e deve ser promovida, mas a segunda, a ideia do dizimo não, porque muitas injustiças são cometidas contra as pessoas indefesas e só Deus sabe com que métodos, que vão das lavagens cerebrais até à venda do céu aos pedaços. Isto a existir é criminoso, deve ser combatido com todas as forças e não importa quem exerce esta usurpação. Nenhuma capa, por mais religiosa que seja, se anda por caminhos perversos do crime, deve responder por isso.