Em tão pouco tempo

Não são as espécies mais fortes que sobrevivem, nem as mais inteligentes, mas sim aquelas que se adaptam melhor à mudança.

Esta frase atribuída a Darwin é enviada e publicada até à exaustão nestes tempos Covidados. Na verdade, ele nunca a proferiu nem a escreveu. Mas poderia tê-lo feito.

A adaptação comportamental a que fomos sujeitos, a que nos sujeitamos voluntariamente, é tela preenchida com pinceladas de surrealismo.

Via há uns dias um programa de decoração de interiores. Pélo-me por um bom programa de decoração de interiores. No fim, todos se abraçavam efusivamente, à boa maneira televisiva americana. E eu, sem saber como nem porquê, retraí-me com aquela proximidade toda. Já me pareceu uma coisa quase pecaminosa.

Em tão pouco tempo.

Precisei de ir andar a pé. De me mexer. De sentir o vento na cara. De me ouvir pensar no silêncio da música dos auscultadores. Só por um bocadinho. Ao longe vinha uma pessoa. Disse-lhe boa tarde quando nos cruzámos. Mas antes mudei para o outro lado da rua.

Em tão pouco tempo.

Contava-me o meu pai que, na última ida à farmácia, estava na fila um energúmeno que espirrou sonoramente sem cobrir a boca. Foi como se um maluco armado desatasse a gritar Allahu Akbar, tal foi a debandada. Uma das pessoas, depois de se banhar em álcool e desinfetante, meteu-se no carro e voou dali para fora. Sem os medicamentos.

Em tão pouco tempo.

Semanalmente fazíamos a lista do supermercado. Os iogurtes tinham de ser Danone, as bolachas Insular e os cereais Kelloggs. Impreterivelmente. Mesmo que implicasse um périplo a vários supermercados. Agora tudo é quinzenal. Os iogurtes são os que há, as bolachas são as que estiverem nas prateleiras e os cereais os que sobraram. E entregues pelo extraordinário Super São Roque em casa.

Em tão pouco tempo.

Quase que faço parte da mobília do Madeira Magic, tal é o número de festas a que lá vai a minha filha mais velha. Ontem ela teve uma festa de aniversário online, via Zoom.  Até há uns dias, nem sabia o que isso era. Sou tão boa com aquilo que fiquei sem saber se os colegas a conseguiram ver e ouvir. Agora tudo é Zoom. As aulas de ioga e as de música. Obviamente não as de natação.

A omnipresença das tecnologias, a que sou confessamente adversa, serve-me súbita e necessariamente como ferramenta de proximidade. De um distanciamento que se quer físico, mas não social.

Em tão pouco tempo.

Em tão pouco tempo habituamo-nos a este novo normal. Não ao mundo Covid. O nosso mundo tem de ser mais que isso.

Mas a isto nos vergamos, nos sujeitamos. Nos adaptamos. Pela sobrevivência.

A ti que te recusas, que infringes, que quebras. Também em ti, inadimplente, Darwin pensou.

Chama-se seleção natural. Boa sorte com isso.