No dealbar de um novo ano o ritual repete-se: formulam-se votos de ano novo vida nova e reafirmam-se as expectativas, realistas ou não, de um país, um mundo melhor.
Seja do ponto de vista pessoal ou comunitário, não faltarão certamente motivos, razões para desejarmos que tais objectivos se possam concretizar.
Do ponto de vista pessoal, a mudança, qualquer mudança é aparentemente mais fácil porque depende em boa parte da nossa vontade. Já do ponto de vista global, qualquer alteração, por pequena que seja, é naturalmente bem mais complicada porque depende da vontade de tantos, de muitos outros, que não apenas de nós.
E se é certo que, perante a realidade que nos cerca, há seguramente diferentes olhares, que em síntese se poderão resumir a mais ou menos optimistas, ou mais ou menos pessimistas, independentemente do nosso posicionamento, não faltarão motivos para preocupação, inquietação ou no mínimo apreensão.
Nesse particular convenhamos que o ano começa mal. É que a acrescentar aos problemas mundiais herdados de anos anteriores, a decisão de Donald Trump de mandar assassinar o número dois do regime iraniano só vem agravar o clima de guerra mais ou menos latente em que vive o Médio Oriente há demasiado tempo. E tal como era previsível o Irão não tardou a retaliar. Com efeito, no momento em que escrevo este texto, ficou a saber-se que duas bases iraquianas onde estão posicionadas forças norte-americanas foram atingidas por “mísseis balísticos” disparados a partir de território iraniano.
Do leque de problemas, de questões mundiais por resolver avultam, sem dúvida, as alterações climáticas,as desigualdades e o populismo em crescendo.
No que toca à problemática climática a recente conferência das Nações Unidas em Madrid veio evidenciar quão profundos são os obstáculos políticos colocados por diversos países com a importância dos EUA, da China, da Rússia, da Índia. Mas não só. Na Austrália, afectada há vários meses por violentos incêndios, e que no passado dia 4 registou em Penirth a temperatura de 48,9º C, para o respectivo primeiro-ministro Morrisson, este cataclismo constitui um fenómeno “natural” e não atribuível às alterações climáticas. De resto, como sublinhava a directora executiva do “Diário de Notícias” de Lisboa Catarina Carvalho em artigo recente, “ a Austrália é dos países que mais tem lutado – institucionalmente – contra as medidas de prevenção às mudanças do clima. O seu governo, conservador, nega até a emergência climática, apoiado por uma imprensa sensacionalista e, também ela, conservadora”. E, citando um texto publicado no “The New York Times” pelo escritor Richard Flanagan, acrescentava que “desde 1996 que todos os sucessivos governos conservadores australianos lutam, com sucesso, para subverter os acordos internacionais sobre o clima em defesa das indústrias fósseis locais. Hoje o país é o maior exportador mundial de carvão e gás. E recentemente estava na posição 57 de 57 países em acção pelo clima”.
Também em artigo recente, publicado desta feita no “Público”, a jornalista Bárbara Reis, recorrendo a um livro (“Factfulness – Dez Razões pelas Quais Estamos Errados acerca do Mundo e porque as Coisas Estão Melhores do Que Pensamos”) do médico e estatístico sueco Hans Rosling, que vale a pena ler, procura introduzir optimismo relativamente ao estado do mundo que o autor assume não ser “tão dramático como parece”. E em abono da sua tese cita inúmeros indicadores: por exemplo, que entre 1997 e 2017, a pobreza extrema caiu quase metade e que a esperança de vida no mundo é de 70 anos, sendo que nenhum país tem esperança de vida abaixo dos 50. E para ele, o mundo já não é dividido em dois, entre países ricos e pobres com um fosso no meio: hoje 75% da população do planeta vive em países de rendimento médio, “nem pobres, nem ricos, mas algures no meio e começando a ter uma vida razoável”.
Sem pôr em causa esta evolução, o académico Francisco Bethencourt, professor no King’s College de Londres, considera, também em texto publicado no “Público”, que os dados sobre desigualdade mostram “tendências contraditórias: enquanto a desigualdade mundial tende a diminuir, a parte das classes médias na distribuição da riqueza a aumentar, e a relação entre os três continentes do Norte a convergir (a Europa apresenta o coeficiente de desigualdade mais baixo), a desigualdade no interior dos Estados Unidos, China e Rússia tende a aumentar de forma significativa. A apropriação dos ganhos dos últimos anos pelos mais ricos não abranda: em 2018, 1% da população controlava 45% da riqueza mundial, enquanto 42 milionários detinham tanta riqueza como 50% da população mundial com mais baixos rendimentos”.
A temática não escapou igualmente à análise de Susana Peralta, professora de Economia na Nova SBE, que em artigo inserto na edição do “Público” de 27 de Dezembro p.p., reportando-se ao Inquérito à Situação Financeira das Famílias de 2017 em Portugal, anotava que os 10% mais ricos detêm mais de metade da riqueza líquida do país. Mas, Susana Peralta assume que este valor omite uma parte importante da desigualdade que de facto existe, uma vez que “os ricos têm o hábito de esconder património em off-shores”acrescentando que, de acordo com os economistas da Universidade de Berkeley Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, estima-se que a riqueza escondida nos paraísos fiscais corresponde a 10% do PIB mundial, defendendo por isso, tal como estes economistas, a aplicação de um imposto progressivo sobre o património que permitiria “corrigir a erosão da progressividade dos impostos sobre o rendimento, já que a distribuição da riqueza é muito mais desigual do que a do rendimento”. A propósito, vale a pena mencionar que, segundo o mapa mundial do Índice de Transparência sobre Desigualdade, que avalia os dados disponibilizados sobre rendimento e riqueza, mas também dados fiscais acerca de propriedade, rendimentos de capital e trabalho, o nosso país surge, com 8 pontos, numa posição bem pouco recomendável, mais perto da Índia, Polónia e Ucrânia (6 pontos), Rússia (5 pontos) do que de Espanha, EUA, França e Noruega (15,5 pontos), Reino Unido (15 pontos), Uruguai (14,5 pontos) ou da campeã Suécia (16,5 pontos).
O retrocesso democrático e o avanço do populismo são, de igual modo, inegáveis. Fenómenos a que a Europa não tem escapado. No chamado grupo de Visegrado (Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia) são, de resto, governo. E em países como a França, a Itália, a Alemanha e a Espanha as forças de extrema-direita detêm um peso eleitoral que não pode deixar de constituir motivo de séria preocupação. No resto do mundo o panorama não é também animador, muito pelo contrário. A China, a Rússia, a Turquia, o Brasil, a Venezuela, as Filipinas e muitos outros nomes de países que se poderiam adicionar atestam isso mesmo. E como é sabido, a extrema direita passou a ter representação parlamentar na Assembleia da República.
Claro que há simultaneamente sinais que nos transmitem algum conforto. É o caso do anunciado Pacto Verde Europeu, apresentado pela nova presidente da Comissão Europeia como o grande desígnio da sua Comissão. E é evidente que é preciso “mudar de vida”. Mudarmos de vida. Abdicar do automóvel de cada um em favor do transporte público. Consumirmos e alimentarmo-nos de outra maneira. Mas, mudanças desta natureza têm, como referiu a jornalista Teresa de Sousa em artigo de opinião publicado no “Público” de 15 de Dezembro, de ser entendidas e, sobretudo, aceites pelas pessoas. É preciso, por conseguinte, que as decisões sejam tomadas tendo em conta a realidade. Sob pena de, como escreveu a citada jornalista, “se as pessoas comuns olharem para elas como uma imposição que afecta a sua qualidade de vida – que também passa pelo consumo -, não vão aceitá-las facilmente.”
O ex-ministro e actual professor universitário Paulo Pedroso, num texto sugestivamente intitulado “Quando Greta (Thumberg) fizer 30 anos” publicado na edição online do “DN” lisboeta do passado dia 3 de Janeiro corrente, assume-se “pessimista” relativamente ao futuro, aduzindo um outro motivo: a falta de líderes à altura dos desafios que o planeta enfrenta. Deixando claro que “não se vê no horizonte que os povos elegessem hoje líderes com energia para mudar o que quer que seja nas grandes questões do mundo e – ou os cientistas estão errados – ou quando Greta tiver trinta anos teremos que lidar com gravíssimos problemas sociais e ecológicos, o que exigirá então soluções que é melhor nem tentar antecipar agora.”
Uma visão que é em grande parte partilhada pelo jornalista Miguel Sousa Tavares, ainda que preanunciando um desfecho não necessariamente tão catastrófico. Na habitual coluna no semanário “Expresso”, na 1ª edição do corrente ano, e tendo como pano de fundo o livro “O Naufrágio das Civilizações” de Amin Maulouf , MST assume: “A mim, o que me assusta não é que os tempos sejam de ruptura, é que circunstancialmente não pareça haver gente capaz e à altura de dirigir o mundo em direcção às mudanças necessárias. Quando Maulouf em “O Naufrágio das Civilizações” diz que vê o mundo actual como o “Titanic”, deslizando em festa em direcção ao icebergue que o há-de afundar, tem razão no que diz quando olhamos para a parte de comando e vemos no leme loucos perigosos ou pantomineiros como um Trump, um Kim, um Boris Johnson, o MBS da Arábia, o assassino filipino e por aí fora. E, no convés de primeira, segunda e terceira classes, uma multidão sem bússola, embriagada de mentiras e de ilusões, seguindo cegamente estes almirantes da catástrofe em direcção a icebergues que até já não existem”.
Sousa Tavares acaba por confessar acreditar que “a espécie humana resistirá” e que “os bons hão-de regressar, e a história continuará”. Sintomaticamente, na mesma edição do referido semanário, o sociólogo Pedro Adão e Silva sintetiza um estudo efectuado por três académicos em que num universo de mais de seis mil inquiridos “cerca de 40% declara-se favorável à destruição de todas as instituições políticas e à sua substituição por novas”.
O que acabará por prevalecer é, sem dúvida, uma das grandes interrogações deste nosso tempo.
*por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.
Posts – Scriptuns : 1) Desplante: o reconduzido titular regional da saúde sentenciou a morte do Serviço Nacional de Saúde. Mas, teve azar, na mesma semana foi notícia a falta de medicamento para o tratamento do cancro, de camas na urgência do hospital e de demora numa cirurgia. Com tantos problemas por solucionar e que se repetem, vai sendo tempo do secretário com a tutela da saúde (melhor dizendo da falta dela) se preocupar com a sua casa. Até porque ter de esperar cinco anos por resultados, como anunciou, é demasiado tempo em saúde!
2) Edificante: pelo que se sabe, a eleição directa para a liderança nacional do PSD pode acabar na justiça, falando-se em impugnações por causa dos votos dos filiados no PSD/M. O caricato de tudo isto é que quem assume o papel de Frei Tomás lá do sítio é nem mais nem menos do que o campeão das chapeladas no burgo. Que tal, antes de se meter em trapalhadas, reler o que disseram e escreveram sobre o assunto António Fontes e Miguel de Sousa?
3) Cromos: a mais de ano e meio de distância das eleições autárquicas de 2021, os dois matutinos locais andam numa disputa a ver quem acerta no candidato laranja à Câmara do Funchal. Dada a proliferação de nomes, é muito provável que lá acabem por acertar no escolhido. Até lá, vão entretendo os leitores. Já agora, que tal criar uma bolsa de apostas?
4) Degradação: ao que se sabe não há pavilhão desportivo que não meta água, tendo-se tornado rotina andar de balde e de esfregona sempre que chove ou proceder a mudanças no local dos jogos. É no que deu a febre do obrar a toda a velocidade, uma das marcas da governação jardinista. É caso para dizer: viva o “pugresso” da Madeira Nova.
5) Números: as perdas nas dormidas do turismo já se cifram em mais de 100 mil, mas para o presidente do governo trata-se de uma redução residual. Quem não perdeu tempo para penalizar como é habitual os trabalhadores do sector foram os hoteleiros, oferecendo o fantástico aumento de 0,5%.
5) Incómodo: caíu o Carmo e a Trindade por o ministro dos Negócios Estrangeiros ter classificado de “fraquíssima” a qualidade da gestão em Portugal. Mesmo que essa fragilidade não seja exclusiva do empresariado e se estenda até à própria classe política que temos, a realidade não permite outra leitura. Como, aliás, é reconhecido por organizações internacionais, como a OCDE.