Antecâmara de Abril na Madeira

 

1969 é um ano marcante na história da Madeira, no período que precedeu o 25 de Abril de 1974.

É certo que os acontecimentos que adiante referirei não tiveram a importância e a projecção que a Revolta da Madeira de 1931 e as Revoltas da Farinha e do Leite significaram na história da Madeira a até do País, durante a longa noite da ditadura do designado “Estado Novo”. Mas, constituíram momentos de afirmação e de reivindicação democrática e simultaneamente de aspiração autonómica.

Um desses momentos marcantes é indiscutivelmente a elaboração da “Carta a um Governador”, documento histórico datado de 22 de Abril de 1969 – há, portanto, quase 50 anos -, subscrito por 39 cidadãos, naturais da Madeira ou aqui residentes, e que foi, em Maio desse ano, entregue ao então “Governador Civil do Distrito Autónomo do Funchal”, coronel Braamcamp Sobral.

O documento que resultou sobretudo da conjugação de esforços de dois núcleos de acção cívica e política, o que girava em torno do semanário “Comércio do Funchal” e o ligado à corrente progressista da Igreja católica, constituído pelos denominados padres do Pombal e por leigos com expressas preocupações sociais, surgiu na sequência da queda do ditador Oliveira Salazar e da sua substituição pelo Prof. Marcelo Caetano, aproveitando a anunciada abertura do regime que, como é historicamente conhecido, rapidamente se esfumou.

A Carta que foi redigida a várias mãos, mas principalmente por António Loja – que a subscreveu enquanto comerciante – e pelo jornalista José Manuel Barroso (redactor do “C.F.”), dava especial ênfase à necessidade de ao Povo Português ser dada a possibilidade de “poder escolher livremente o tipo de sociedade”, de se “proporcionar à Nação o debate livre de todos os problemas  que ela enfrenta (o do Ultramar incluído)”, mas  deixava igualmente claro que o que se pretendia, não era uma operação de cosmética, uma simples “renovação na continuidade” , como advogava o marcelismo, mas profundas mudanças, como se constata pela citação seguinte: “O problema, agora, não é o de falar em ‘Pátria’, em ‘Soberania’, o problema, agora, é o de se restituir à Nação o poder de decisão que lhe foi subtraído sistematicamente; é o de começar o renascimento do país através do aumento efectivo dos salários baixos, do aumento do número de filhos de camponeses e operários nas escolas, liceus e universidades, da industrialização das regiões atrasadas (que o mesmo é dizer, de quase todo o território nacional), da realização de uma ampla reforma da estrutura agrária, da instauração da justiça social só possível através de um acréscimo de recursos mais bem repartidos; e o de restaurar a ordem, através de uma sociedade democrática moderna” (fim de citação).

A Carta deixava igualmente muito claro não terem os signatários quaisquer ilusões relativamente ao carácter meramente formal, nominal do respectivo “Estatuto de Autonomia”, nomeadamente quando concluía: “ a autonomia do Distrito fica submetida, permanente e pormenorizadamente, à tutela do poder central ou dos seus representantes, o que coloca de facto a administração regional numa espécie de «liberdade condicionada»”, não surpreendendo por isso que tivesse ficado expresso que “sem uma substancial modificação de quadros e estruturas, sem um apoio financeiro em conformidade com as necessidades do Distrito, sem uma revisão de conceitos quanto à maneira de processar-se a participação das populações no seu próprio destino, não é viável supor, por mais que se esforce por ser o nosso optimismo, que a existência, por si só, de um Estatuto de Autonomia, possibilite largos voos em direcção ao futuro”.

Além destes aspectos, a Carta expôs a nu  a realidade da Madeira nesse final dos anos 60 do século passado, debruçando-se sobre diferentes áreas como a agricultura , a indústria e comércio, o turismo, a educação e cultura, a saúde, a habitação e a emigração, assumindo, “sem receios de qualquer exagero, encontrar-se a Madeira no limiar de uma das maiores crises económicas da sua História”.

E a análise às referidas áreas e sectores da actividade económica regional não se limitava a identificar os problemas, apontando também para as soluções que urgia implementar. Advogando, por exemplo, ao nível da agricultura ser “urgente abolir o regime de colonia, tornando directamente proprietários das terras aqueles que nelas trabalham” e no domínio da indústria e comércio “o estabelecimento de um porto franco ou de zonas francas no Arquipélago é uma necessidade que, debatida como tal desde há cerca de um século, nunca foi decidida favoravelmente em relação às expectativas locais”.

Já no âmbito do turismo constatava-se que “a transportadora nacional é insuficiente para corresponder às necessidades da Madeira” e assumia-se a premência do “prolongamento da pista” do aeroporto de Santa Catarina, “pois o problema da sua utilização à escala «industrial» não depende das obras em curso ou já projectadas, mas, outrossim, da verdade irrefutável: falta de pista apropriada”.

No que concerne à educação e cultura preconizava-se como “prioritária a necessidade de lançar uma grande campanha popular de alfabetização, operação básica, de resto, para a aplicação de qualquer programa sério e honesto de desenvolvimento regional” e relativamente à habitação social era denunciado o facto de constituir um “grave problema” que “continua por resolver”.

E, por fim, no que diz respeito à emigração assumia-se que se “se perguntasse, neste momento preciso, qual a maior ambição do jovem madeirense, a resposta maioritária seria decerto: emigrar”.

Esta “Carta a um Governador” – que haveria de ser entregue no início de Maio de 1969 por António Loja e pelos jornalistas Helena Marques e José Manuel Barroso -, ao contrário do que se possa apressadamente deduzir, não é um documento totalmente datado no tempo. É certo que a realidade regional mudou em muitos aspectos – era inevitável que assim tivesse ocorrido face aos muitos milhões de contos e de euros provenientes do Estado e da agora União Europeia -, mas há problemas que subsistem, como sejam os poderes autonómicos, a questão das acessibilidades marítimas e aéreas, as carências de natureza social, nomeadamente na saúde e na habitação, e o recurso à emigração como escape às crises económicas e como garantia de um mínimo de subsistência para quem a ela recorre e para os familiares que eventualmente aqui possam permanecer.

Mas, a Carta teve uma outra particularidade relevante: a de evidenciar de forma irrefutável que quem governa a Região no pós-25 de Abril de 1974 não inventou nada que não tivesse sido analisado, equacionado, preconizado, reivindicado no passado, em particular pelos subscritores da missiva datada de 22 de Abril de 1969.

Uma abordagem realizada num contexto político adverso, de cerceamento das mais elementares liberdades democráticas, correndo riscos pessoais, enquanto muitos outros, como aqueles que mais tarde tentaram apropriar-se da reivindicação autonómica, não só pautaram a sua vida pela mais completa indiferença e passividade, mas, no que é ainda mais grave, teciam loas ao antigo regime corporizado por Oliveira Salazar e Marcelo Caetano.

Com efeito, com que autoridade se critica, se vitupera o “Estado Novo” quando se o elogiou publicamente até ao eclodir da “Revolução dos Cravos”?

No pós-25 de Abril de 1974 passou a ser facílimo apontar o dedo à ditadura anteriormente vigente. Responsabilizá-la de todos os males. Mas, havia quem tinha autoridade moral para o fazer, porque tinha tido essa coragem em tempos de ditadura. Outros por cobardia, ou por identificação com o regime então deposto, só se atreveram a fazê-lo à posterior.

Parafraseando o escritor Óscar Wilde: “O nosso passado, aí tendes o que nós somos. Não há outra forma de julgar as pessoas”. Ou seja, há quem tenha passado e quem não tenha. Há quem tenha passado de que se possa orgulhar e há quem tenha um passado triste. Que não gosta de recordar. Nem de que dele falem.

Talvez por tudo isto, a criatura que se autoproclama autor de uma denominada “Revolução Tranquila” tenha particularizado como alvos políticos privilegiados alguns dos principais subscritores da “Carta a um Governador”, designadamente António Loja, Vicente Jorge Silva e o chamado grupo dos “Padres do Pombal”, em  resultado de ser portador de uma mente pródiga em fantasiar conspirações com origem em toda a parte e que nem Bush, a Trilateral e a Maçonaria escaparam…

Como também não foi certamente por acaso que, imediatamente a seguir ao 25/4/74, alguns desses subscritores assumiram papel relevante na vida política regional, em particular, o já referido dr. António Loja, como presidente da Junta Geral.

O mesmo sucedeu, aliás, com outros dos signatários da Carta, como Monteiro de Aguiar que foi eleito deputado à Assembleia Constituinte, em representação do PS-M e membro da Junta Governativa da Madeira – mais tarde foi deputado à Assembleia Regional pelo PSD-M – e Élia Brito Câmara, viúva do dr. Brito Câmara, também deputada à A. Constituinte pelo PSD-M.

Dois outros subscritores tiveram igualmente intervenção política e parlamentar. Casos do dr. Rui Nepomuceno, dirigente do PCP e deputado à ALM, e de Henrique Sampaio, o autor do presente texto, fundador da UPM (União do Povo da Madeira) e da UDP-M e no final dos anos 90 do século passado, também deputado à ALM em representação do PS-M.

De entre os 39 subscritores da aludida Carta, de que apenas 13 se encontram vivos, saliência para os médicos António França Jardim e Fernando Azeredo Pais, os advogados António Sales Caldeira e Emília Sales Caldeira Barroso, o arquitecto Marcelo Costa, os escultores Amândio de Sousa e Anjos Teixeira, o músico Artur Andrade, os jornalistas já citados José Manuel Barroso, Helena Marques e Vicente Jorge Silva, os sacerdotes católicos drs. João da Cruz Nunes e Arnaldo Rufino da Silva, António Ramos Silva, Gabriel Lino Cabral e José Maria Araújo, a professora Natália Pais Pita, o comerciante Aires de Albuquerque, o desenhador e cartoonista Paulo Sá Brás, o gerente da indústria hoteleira Gabriel Trigo Pereira, vários outros comerciantes e quatro militantes da Juventude Operária Católica Feminina. Realce ainda para a circunstância de a Carta ter sido assinada por 10 mulheres, um número significativo, se atendermos ao papel subalterno que a ditadura reservava ao sexo feminino e para o facto da generalidade dos seus subscritores ter mantido uma intervenção cívica relevante após a queda da ditadura fascista.

Sublinhe-se, por outro lado, que o ano de 1969 fica ainda marcado, aqui e agora, pela divulgação em Outubro desse ano de uma outra Carta, endereçada aos candidatos a deputados por um grupo de 8 padres católicos da Madeira, assumindo: “Não podemos aceitar qualquer ordem social que tolere a opressão e o desprezo dos direitos fundamentais do homem” e que “o evangelho que anunciamos não é neutralidade mas exigência de partilha, de justiça, de liberdade, de verdade e de paz”. Os signatários, em que se incluíam 4 dos subscritores da “Carta a um Governador” – os drs. João da Cruz Nunes e Rufino Silva, e os padres Ramos da Silva e José Maria Araújo – foram ainda os padres José Martins Júnior, Mário Tavares Figueira, José Vieira Pereira e António Pedro Alves, tendo, quer Martins Júnior, quer Mário Tavares, sido eleitos deputados à ALM, o 1.º em representação da UDP e do PS e o 2.º da CDU, além de que o pároco da Ribeira Seca exerceu as funções de presidente da Comissão Administrativa da Câmara de Machico e, mais tarde, foi igualmente eleito presidente desta Autarquia local, em listas da UDP e do PS-M.

Ainda em 1969, e pela primeira e única vez durante a ditadura do Estado Novo, a oposição na Madeira apresentou uma candidatura às eleições para a designada Assembleia Nacional. Tratou-se das raras vezes, no decorrer desse período negro da história do nosso país, em que a oposição democrática na Madeira fez ouvir publicamente a sua voz, se exceptuarmos os anos de 1949 e 1958, por ocasião das candidaturas presidenciais dos generais Norton de Matos e Humberto Delgado.

Na Madeira, e ao contrário do que se verificou em vários distritos do Continente – em que concorreram  listas patrocinadas pela CEUD (próxima do PS) e pela CDE (com ligações  ao PCP) -, houve uma única candidatura, sob a sigla CEDM (Comissão Eleitoral Democrática da Madeira), que integrou como candidatos efectivos, os já mencionados António Loja e José Manuel Barroso e ainda o advogado Fernando Rebelo (que a encabeçava), e que, após o 25/4/74, foi nomeado governador civil do Distrito do Funchal.        Como suplente foi indicado o médico pediatra Manuel Ivo Caldeira que se assumia como católico.

De algum modo, esta candidatura é reflexo da movimentação gerada em torno da “Carta a um Governador”. Uma consequência quase inevitável. Visando aproveitar a propalada “abertura marcelista”. Intervenção desencadeada, porém, sem ilusões. Até porque, na sequência da entrega da Carta, o governador não só não deu qualquer sinal de mudança, pelo contrário, tentou, através da polícia política, a PIDE/DGS, identificar a sua origem e feitura, como se negou a facultar os cadernos eleitorais  que, entretanto, lhe haviam sido requeridos.

Nas urnas, repetiu-se o desfecho de outros actos eleitorais em que a oposição ousou concorrer. Vitória esmagadora da lista da União Nacional, encabeçada na Madeira pelo dr. Agostinho Cardoso. Graças ao habitual método das “chapeladas eleitorais”.

No terreno, pese embora todas as limitações, quer ao nível da cedência de espaços, quer da simples divulgação da mensagem através da imprensa, foi possível constatar que o desejo de liberdade, de democracia e de autonomia era mais forte do que o sentimento de medo que assolava a sociedade madeirense. É isso que explica que os dois comícios realizados no Funchal, um num prédio em construção, junto ao então restaurante “Avião Novo”, na zona velha da cidade, e o outro num espaço cedido pela sra.     Teresa Accioly, na Rua das Mercês, tivessem registado uma forte adesão popular.

Os anos seguintes foram suficientemente elucidativos para retirar qualquer espécie de ilusão relativamente ao logro da aludida “primavera marcelista”. Daí que, 4 anos volvidos, a oposição já não tenha marcado presença. Por descrer de qualquer mudança de regime pela via eleitoral.

Isso mesmo compreenderam os deputados anteriormente eleitos em representação da designada “Ala Liberal”         , como Francisco Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Miller Guerra, entre outros.

Já a criatura que pretende ficar para a história como o criador da denominada “Madeira Nova”, não se coibiu de escrever no semanário “Voz da Madeira”, dirigido pelo seu tio (Agostinho Cardoso), a 28 de Maio de 1973, data que assinala a efeméride do “Estado Novo”, o seguinte: “O confronto honesto do positivo e do negativo realizado, embora sempre subjectivo, permite a conclusão de que o regime serviu o País”.

O final dos anos 60 e o início da década de 70 assinalam ainda a plena afirmação no espaço nacional de um semanário editado no Funchal, o “Comércio do Funchal”, o célebre jornal “cor-de-rosa”, como ficou historicamente conhecido. Um jornal que nos seus tempos áureos viria a atingir tiragens de 15 mil exemplares e que o grande impulsionador do Congresso Republicano de Aveiro, o advogado Mário Sacramento, consideraria como um fenómeno “extraordinário e quase miraculoso”.

Um semanário que se caracterizava por ser um espaço plural, de confronto de ideias, sem exclusão de nenhuma corrente de opinião, ao contrário do que sucedeu, por exemplo, com outros projectos jornalísticos  comprometidos com uma determinada corrente ideológica como as revistas “Seara Nova”, “Vértice” e “O Tempo e o Modo”, e o semanário “Notícias da Amadora”.

E o “C.F.” acabou por ser também a escola de formação e de afirmação de futuros grandes nomes do jornalismo português como os já referidos Vicente Jorge Silva e José Manuel Barroso, mas também António Mega Ferreira, Fernando Dacosta, José António Saraiva, Ana Navarro Pedro, João Carreira Bom, Maria José Mauperrin, dos escritores Hélia Correia e Rentes de Carvalho, do editor Júlio Henriques, do advogado José António Barreiros, do historiador José Freire Antunes, dos professores universitários Mário Vieira de Carvalho e António Jacinto Rodrigues, e do politico José Silva Marques.

As páginas do “C.F.” contaram ainda com a valiosa colaboração de madeirenses como Ricardo França Jardim, José Agostinho Baptista, Rui Teives Henriques, Leopoldo Gonçalves, João José Teixeira, Luís Manuel Angélica, José Maria Amador, Duarte Sales Caldeira, José Manuel Coelho, Vítor Rosado, Paulo Sá Brás, António Aragão e Liberato Fernandes. E pessoalmente sinto um orgulho muito especial e honra por ter feito parte deste extraordinário projecto.

 * Por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

Post scriptum:  1) Familygate: independentemente de se tratar de um processo (a nomeação de familiares) em que todos os partidos, sem excepção, têm telhados de vidro, há (deveria haver) limites. Que, pelos vistos, estão a ser largamente ultrapassados. Mas, também, há gentinha que deveria ter vergonha em vir falar de ética como Cavaco Silva ou Paulo Rangel. Muito menos o PSD-M com uma prática de décadas escandalosa. Por pregarem a moral que não praticaram, nem praticam.

2) Em bolandas: qualquer que seja o crédito que dermos aos inquiridos na Comissão de Inquérito à Unidade de Medicina Nuclear do SESARAM, a confiança no sistema está minada. E particularmente numa área extremamente sensível. Com claro dano para a esmagadora maioria dos cidadãos-utentes que não dispõem de condições para recorrer ao privado, muito menos a serviços prestados fora da Região.

3) Manobras: a juíza Joana Dias não quer julgar o processo intentado por António Loja contra o ex-presidente do governo regional. Não deixa de ser estranho que só agora o faça depois de não ter sentido qualquer incómodo em julgar um outro processo em que o antigo inquilino da Quinta das Angústias era também arguido. E assim funciona a justiça portuguesa, ou, se preferir, a justiça made in Madeira.

4) Dívidas à Segurança Social: 12 e 9 anos sem pagar. Os casos e as condenações em tribunal sucedem-se. Mas, nem assim o governo regional disponibiliza, ao contrário do que se verifica a nível nacional, a lista de devedores. Para proteger o quê e quem?

5) “Absurdos”: o responsável pelo legado do PAEF de triste memória que infernizou a vida a milhares de cidadãos dedicou-se a identificar o que classificou de “absurdos”. Esqueceu-se do maior: o de, depois de 48 anos de fascismo, o povo madeirense ter suportado 37 anos sujeito à prepotência do “campeão português do insulto”. Safa! Ou, quem sabe se a explicação está naquela estatística do nível de demência?