“É agora ou nunca”. Enfermeiros de pediatria da Madeira vão suspender atos especializados

Os enfermeiros estão agastados com a má vontade política do governo central. Mas garantem que a segurança de nenhuma criança será posta em risco.

A contestação alastra. Os enfermeiros especialistas em Saúde Infantil e Pediatria da Madeira vão entregar na próxima semana às autoridades regionais um documento dando conta da sua intenção em partir para o protesto de zelo semelhante ao dos colegas de Saúde Materna e Obstétrica. Ou seja, caso as negociações com o governo central não cheguem a bom porto, tudo aponta para que, em inícios de outubro, possam vir a ser suspensos atos de enfermagem diferenciados ao nível da pediatria, no hospital e centros de saúde da Região. Cuidados intensivos pediátricos e neonatologia são alguns dos serviços que podem vir a sofrer constrangimentos.

A informação foi avançada ao FN por Tânia Costa, enfermeira especialista em Saúde Infantil e Pediatria, uma das muitas profissionais que integram o movimento regional que se prepara para levar adiante mais uma iniciativa de contestação à forma como o processo em torno da carreira e remunerações tem vindo a ser adiado.

A minuta, dando conta da intenção em suspender – ou pelo menos contestar simbolicamente – atos de enfermagem diferenciados pelos quais não estão a ser pagos, seguirá ainda para a Ordem dos Enfermeiros, à semelhança do que já aconteceu com os colegas de Saúde Materna e Obstétrica do SESARAM.

Uma questão de justiça

Ao nosso jornal, Tânia Costa justifica a medida como uma forma de pressionar o Ministério da Saúde a reconhecer política e profissionalmente a intervenção técnica especializada dos enfermeiros, um trabalho que tem vindo a ser desenvolvido em prol da segurança e qualidade dos serviços apenas a expensas dos profissionais. “É uma questão de justiça. Estamos sem carreira desde 2009. Basta de boa vontade. Isto é o limite”, sintetiza a enfermeira madeirense, que se junta assim ao movimento nacional iniciado em julho pelos enfermeiros obstetras e que veio a afetar várias dezenas de salas de parto do país.

Esta profissional diz estar a encontrar na classe um novo ânimo para contestar e fazer valer os seus direitos. “Há um clima de grande solidariedade entre todos, generalistas e especialistas, porque estão em causa questões que dizem respeito a todos. As pessoas sentem que é agora ou nunca”, reforça Tânia Costa que não esconde o desalento ao fim de quase 20 anos de profissão. Em causa está a desconsideração com que o Governo da República tem tratado os enfermeiros, adiando sistematicamente questões essenciais que visam a reposição da justiça e dignidade da classe.

“Não somos estúpidos”

Ainda esta quarta-feira, os enfermeiros especialistas, das várias valências, protestaram à porta do Hospital Dr. Nélio Mendonça, no Funchal, no sentido de manifestar a sua indignação pelo impasse a que chegaram as negociações com o Ministério da Saúde e que já levou o Sindicato dos Enfermeiros a decretar pré-aviso de greve nacional de 11 a 15 de setembro. A intenção foi demonstrar publicamente que os profissionais de enfermagem, sejam eles especialistas ou generalistas, estão unidos em torno de uma questão considerada fundamental e que tem vindo a ser adiada pelos vários governos desde 2009: a criação de uma carreira de especialista e respetiva diferenciação salarial, para além da reposição das 35 horas semanais, situação esta que na Região foi entretanto reposta desde o ano passado.

“Algo que é mais do que justo e que ocorre em outras carreiras técnicas superiores do sector público. Nós somos profissionais com carreira especial de complexidade nível três, ou seja, o máximo. Porquê então esta má vontade em nos reconhecer como tal, mantendo a discriminação de tratamento entre classes profissionais? “, interroga. “Nós não somos estúpidos. Somos cada vez mais diferenciados e com formação em diversas áreas”.

(Foto SESARAM)

Possíveis constrangimentos na neonatologia e urgência

Grande parte deste protesto visa também chamar a atenção da opinião pública para uma causa nacional e que tem a ver com a capacidade de resposta dos sistemas de saúde.

“Esta luta é, sobretudo, em defesa dos utentes. Se estamos insatisfeitos, como podemos garantir que vamos tratar bem dos doentes, que estamos a dar o melhor de nós”, sublinha. “Este nosso protesto é também o culminar de sucessivos alertas para o estado de exaustão dos enfermeiros. Estamos insatisfeitos e frustrados profissionalmente. Se não mudarmos este cenário, vai haver falhas na cadeia de prestação de cuidados, algo que não queremos. Portanto, não se trata apenas de uma matéria de mais salário, mas de um conjunto de condições de respeito e dignidade que promovam a qualidade dos serviços”.

Sobre a forma como este protesto vai ser operacionalizado na prática e que atos poderão estar em causa, Tânia Costa explica que dependerá dos serviços em que são prestados, recordando que os enfermeiros especialistas em Saúde Infantil e Pediatria têm intervenção técnica diferenciada em serviços hospitalares como a urgência, os cuidados intensivos pediátricos e neonatais, assim como, nos centros de saúde.

“O que lhe posso garantir é que a segurança de nenhuma criança ficará em risco ou deixará de ser tratada com o mesmo profissionalismo. Agora, precisamos mesmo de fazer sentir à tutela que a complexidade e diferenciação técnica da nossa intervenção, que vai para além do ato clínico sobre a criança, englobando pais e demais família, tem de ser reconhecida e valorizada. Estamos magoados e têm de agora olhar por nós”.

Falta reconhecimento político

Para além de um mestrado em gestão e economia em saúde, Tânia Costa é especialista em Saúde Infantil e Pediatria há cerca de 12 anos, um grau que lhe exigiu dois anos de formação intensiva em Coimbra, para além da sua formação base em enfermagem. Especialização que lhe permite tratar dos pequenos pacientes de uma forma integrada e eficaz atendendo à suas especificidades. “No meu caso, por exemplo, ao abordar uma criança não podemos pensar que se trata de um adulto pequeno. A medicação, a intervenção técnica e psicológica, a relação com os pais e famílias em situações de doenças crónicas e terminais são dimensões muito específicas que só um enfermeiro especialista tem o conhecimento, o treino e o olho clínico. E estas competências são fundamentais até na articulação com os médicos e restante equipa técnica”.

A profissional acredita que da parte dos utentes esta diferenciação até é reconhecida e valorizada. O amor à camisola, a dedicação aos doentes tem sido o motor da ação dos enfermeiros e o garante da confiança nos seus serviços. “Falta é reconhecimento político”, sublinha. “Não podem ser nossos amigos só em tempo de eleições.”

O movimento dos enfermeiros de pediatria é ainda recente, mas promete não ceder enquanto a tutela não reconhecer as reivindicações da classe. “Sei que há alguma pressão para nos fazer desistir, mas pelo menos comigo não vão conseguir”.

Ao nível da pediatria, os enfermeiros são confrontados com muitas solicitações no âmbito das suas funções. Há quem assuma cargos de chefia de equipa, seja responsável pelas classificações, gerindo e coordenando equipas. Participam também em reuniões de preparação cirúrgica, em reuniões multidisciplinares de oncologia, sendo o elo de ligação entre as diferentes áreas. Ao enfermeiro pediatra cabe ainda mediar em casos sociais complexos, referenciando casos de risco, abuso e negligência. Tratam de crianças do serviço de hemato-oncologia, que só especialistas dominam, gerem a farmácia e stocks de medicamentos, materiais e outros equipamentos. Prestam ainda funções no âmbito da tutoria de alunos de enfermagem. Em suma, as suas competências científicas são transversais o que resulta num acréscimo de responsabilidades individuais e coletivas.