Insanidade em 140 caracteres

 

icon-mota-torres-opiniao-forum-fn-c-2Depois da sucessão de acontecimentos políticos ocorridos nas últimas duas ou três semanas, das nuvens negras que se adensam no horizonte das nossas existências e das consequências possíveis para o futuro de todos, não faria qualquer sentido que eu me sentasse a uma mesa, pretendendo reflectir sobre o mundo que nos rodeia, e os ignorasse, ou menorizasse, à revelia daquele que é um sentimento generalizado de desconfiança, repúdio, de medo, de nojo até. Independentemente do que o futuro vier a ditar, de tudo o que até agora vimos, lemos, interpretamos e tentamos digerir, a sensação que nos invade é de indisponibilidade, de recusa, de estupefação, de incredulidade. Não que já não adivinhássemos, pelas “promessas” apregoadas, de que algo de muito preocupante estivesse iminente, mas porque, no meio do que parece ser a expressão cruel de uma insanidade até aqui, apenas, suspeitada, a administração norte americana, pela voz e pelo punho do seu principal responsável, o Donald Trump, a partir daqui a ser designado por DT, ter começado a fazer deflagrar as temíveis decisões correspondentes, obrigando-nos ao aparvalhado comentário de que “afinal era a sério!”, e a colocar em crise grande parte do que tínhamos como adquirido, como são, como negociável, como articulável, como civilizado, como tendencialmente tranquilizador.

Mês em cima de mês fomo-nos habituando à ideia de que, pelos States, se passeava, de Norte a Sul, de Este a Oeste, uma personagem traquinas, (para ser simpático), de seu nome DT, que, aproveitando as primárias visando a eleição presidencial, tinha resolvido dar um ar da sua graça… Ganhou as primárias! Mais agressivo, mais contundente, mais ameaçador, arrancou para a campanha eleitoral munido das mais escabrosas provocações e de inúmeras e insanas manifestações de 140 caracteres, no twitter, que adoptou como letal arma política. Surpreendidos embora, acreditamos, porque mais racional, que não teria sucesso naquele que era o seu objectivo final: ser Presidente dos Estados Unidos. Eleito, ele é o Presidente dos Estados Unidos! Enganamo-nos, ponto.

“Ainda a procissão vai no adro”, diz-se, e, vindo dele, do DT, já tudo parece possível. Depois de denunciado pelo modo vil e canalha como encara as mulheres e o seu relacionamento com elas, pediu desculpa – de mau pagador, claro, campanha obrigava – mas, em outros tabuleiros, apurou-se. Concluiu, depois de séria e pertinaz investigação que a tortura funciona mesmo e, portanto, é defensável – um génio; os “seus” cientistas confirmaram-lhe, coisa que ele já intuía, que essa coisa do ambiente é uma grande treta – é falso, dizem eles, que haja “aquecimento global” e essa estória das alterações climáticas é uma invenção para prejudicar os Estados Unidos… rasgam-se os acordos e os protocolos sobre o tema, nomeadamente o de Paris, reforça-se a produção e o consumo de combustíveis fósseis e desinveste-se no “verde” e nas energias alternativas, indo ao ponto de ameaçar multar quem com isso se ocupar; nos planos geopolítico e geoestratégico, procura novos aliados, questiona a existência da NATO, quer destruir, politicamente, claro, a União Europeia, quer mais exits, não vê com bons olhos a ONU, espaço de diálogo no concerto das nações, e ameaça com uma postura diferente dos EU’s nessa grande organização; a propósito do terrorismo, e metendo tudo no mesmo saco, desenvolve e exerce uma discriminatória prática racista, xenófoba, anti-imigração, – já o levou a despedir a Procuradora-geral interina, Sally Yates, por contrariar as ordens dadas em relação aos muçulmanos, alguns muçulmanos, de que ele não gosta -, e de recusa de qualquer política de apoio a refugiados; retomando uma prática de um profundo protecionismo, quer rever quadro do comércio internacional, sem que isso signifique adaptá-lo a exigências de progresso e de aceitação mais global; incendeia os serviços secretos americanos, deixando no ar a desconfiança e o mal-estar e, porque há sempre alguma coisa que nos escapa (?), salvo seja, perde-se de amores por Putin… que quererá isto dizer? – Veremos, um dia destes; aparecerá, porventura, na insanidade dos 140 caracteres dele.

A pergunta mais óbvia, penso, é a que se prende com a nossa incapacidade para detectar de onde lhe vem a força que parece ter e o perigo que isso pode representar, não só para os Estados Unidos, mas para o mundo. Pressentimos os nacionalismos que se vão exibindo, imaginamos, em intensidade, que não em valor, os interesses económicos e financeiros comprometidos, desconhecemos o perfil de quem, na sombra, determina o que há que ser feito, como tem de ser feito e com que força deve ser concretizado. A equipa da administração norte-americana é, afigura-se-me, apenas, a face visível de um poder que, contra tudo e contra todos, quer um país governado com mão de ferro, desrespeitador da sua já longa história democrática, onde o poder se exerce exclusivamente pelo poder e pelo que pode significar de indefensáveis privilégios para quem o detém e para quem lhes está, por qualquer influente razão, próximo. A equipa da administração norte-americana, esta equipa, é o rosto da violenta interrupção pretendida num percurso assinalável de respeito pelos direitos humanos, de afirmação de modernidade, – sim, eu sei que esse grande país está longe de uma desejável homogeneidade em todos estes domínios -, de investimento na formação, na investigação científica e tecnológica, no rumo da modernidade.

É penoso, por isso, ver, como o mundo viu, face a tudo o que, com preocupação, vai acontecendo nesse enorme país, a América, como vulgarmente se diz confundindo-o com o continente, que não podemos esconder a perplexidade de, boquiabertos, assistir à diligente e deprimente viagem da Primeira-ministra britânica, pátria da mais antiga democracia no mundo, Theresa May, – na ânsia de encontrar soluções políticas e comerciais que lhe permitam transformar o brexit num caso de sucesso -, aos Estados Unidos, a Washington, para um beija-mão a DT, de que, face ao mundo democrático, atento e civilizado, estava dispensada, completando depois esta viagem, com uma outra, à Turquia de Erdogan que, em circunstâncias normais deveria estar a ser objecto de muita atenção e, sobretudo, de muita prudência, em vez de palco perigosas precipitações.

Para Max Weber, o poder é a “capacidade de impor sem alternativa para a desobediência”; o que todos esperamos, julgo, é que, face a DT, a todo este seu destempero e ao seu comportamento tendencialmente autoritário e antidemocrático, a desobediência se afirme, passe a ser a regra e o comportamento cívico dos americanos, – e dos que o não são -, tenha o timbre da contestação, do inconformismo, da resistência. O mundo tem em todos eles, como em outros graves e momentos da História, os olhos postos.

Dizia W. Churchill: “Quanto mais para trás se conseguir olhar, mais para a frente se deverá ser capaz de ver”.

So, don’t give up, guys.

Nota:

O autor deste texto, por vontade própria, escreve de acordo com a antiga ortografia.