Colocar o telemóvel no silêncio ou colocar-se no silêncio ao telemóvel?

 

icon-joao-abel-torres-opiniao-forum-fn-c2Nos tempos que correm é raro o café, a esplanada ou restaurante que não disponham de “wifi” gratuito, qual chamariz para clientela tecnologicamente mais dependente.

Por mais pequeno e acanhado que seja o estabelecimento de restauração ou outros, é quase uma ofensa o proprietário não ter o aparelhinho de rede e a respetiva palavra-passe de acesso, à mão, caso não queira perder clientela ou ser tido por jurássico.

O “Pau de Selfie”, espécie de canadiana invertida, já não é tão visto em esplanadas de pequena dimensão (julgo eu), em razão de se poderem acidentalmente (que Deus nos livre!) enganchar uns nos outros, desmanchar penteados, mergulhar na bica alheia ou ficar a nadar no molho do prato do dia, mas, como diz a sabedoria popular, ainda aqui vamos…

Claro que família “moderna” que se preze também não pode ir comer fora uma “espetadinha” sem levar o indispensável portátil, o inevitável tablet, o obrigatório smartphone ou iphone e, claro, os imprescindíveis headphones, naturalmente para estar em plena comunhão com a ocasião, o ambiente, o convívio, o momento de socialização.

Um jantar romântico “comme il faut”, hoje por hoje, já não dispensa as lanternas dos telemóveis do casal apaixonado, em lugar das ultrapassadas velas (com a acrescida vantagem de se evitarem focos de incêndio), bem como da oferta de um cartão de memória de maior capacidade, em lugar daquele caduco anel de pedido dos cotas.

Para se poupar no português até se poderia fazer a encomenda do jantar, com cafés e sobremesas incluídos, via correio eletrónico, só para não perder tempo a falar com gente desconhecida, como empregados de mesa, ou incomodar as criaturas distantes e virtualmente presentes, chamadas filhos ou sobrinhos, com perguntas sobre preferências de “acompanhamentos”. Há que poupá-los a esses atrapalhos!

Além disso, é uma excelente oportunidade para os avós porem aquela coisa chamada  “conversa” em dia, lá entre eles, sobre “cozinheiras” a petróleo ou cartas paleolíticas da Venezuela.

Celebração religiosa “in” é também hoje aquela em que se ouvem telemóveis no “levantar a Deus”, aproveitando-se os momentos de “aleluia” e leituras do evangelho para enviar e receber SMS, normalmente inadiáveis, de extrema urgência, do género atualização de fotografia no facebook em “modo” “olha para mim em registo devoto”.

Por este caminho, prevejo, não serão estranhos, a muito breve trecho, avisos como os do seguinte teor:

Silêncio (desliguem os telemóveis) que se vai cantar o fado.

Atenção (desliguem os tablets) que este é um local de oração.

Respeito (desliguem os portáteis) que estamos num velório.

É favor não fazer selfies, muito menos, a sorrir. Você está no campo de concentração de Auschwitz. Aliás, hoje em dia, há um fotógrafo profissional em cada esquina disponível para registar incêndios, cheias, acidentes de viação, entre outros, para enviar aos 3000 ou 4000 amigos.

“Deitar a mão” pode ficar para depois. Alguém que chame os bombeiros. A prioridade é a foto e o sucesso que vai fazer nas redes sociais. Isso, sim, é que é de valor!

Há mesmo pais “babados” que me dizem que os seus filhos enviam mensagens uns aos outros quando estão sentados lado a lado no sofá. Nada mais natural. Entre namorados também se vê, e já quase ninguém estranha. É, por assim dizer, o novo entendimento de “calor humano”. Hoje, e até parece que estou a ver, em versão atualizada, Romeu suicidar-se-ia por asfixia com o fio do carregador, e Julieta far-se-ia explodir com um smartphone daqueles marados da Samsung.

Enfim,  sentar-se atualmente a uma mesa de café e estar rodeado de pessoas que nos são próximas, como familiares, amigos ou colegas de trabalho, absoluta e resolutamente distantes ou deliberadamente alheios, já não é exceção, mas, muito pelo contrário, regra. A regra de “o meu gadget é maior que o teu”, “o meu tem mais pixels/gigas/apps” ou quantos likes  tem o canito a alçar a perninha para fazer chichi nas minhas pantufas e pupu no teu pé de alface.

Este é o “admirável mundo novo” a caminhar para uma espécie de “autismo” voluntário (perdoe-se-me a força do termo), porventura  humanamente mais gélido que o roçar de dois icebergues no Ártico da solidão ou alienação modernas.