Opinião FN de Irene Lucília: “O Fogo”

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Irene Lucília Andrade

Foi preciso deixar passar o tempo para que se espraiasse a mágoa. Foi preciso que os dias voltassem a absorver as cores das flores e do mar, e os verdes que sobraram procurassem de novo a energia criadora da luz para que aos olhos regressasse a serenidade do olhar, para que a lembrança se revestisse duma ténue velatura de saudade e tudo assim, o coração guardasse, contido e resignado. Guardar, veladamente, para não esquecer, a angústia e o desespero, e mais tarde poder restaurar a memória, ainda que se viva a pena duma dor adormecida. Que a dor não se esgota; apenas adormece.

Naquele dia eu vi o grande poder que descia da serra, dominando a paisagem, ocultando curva a curva o perfil dos montes, invadindo o céu por cima das casas, ganhando a forma duma onda gigante, cinzenta, pesada e opaca, garra fatídica dum monstro incontrolável, a devorar a floresta em fúria assustadora. Avançava sem destino certo, sem avisar que intenção era a sua, que caminho de destruição era o seu: se apenas um certo círculo de árvores lá no alto, ou se vinha para engolir a cidade ou até o mar. Quem saberia ? À medida em que a tarde crescia, crescia o onda, e enegrecia, saltava a ribeira e o vale, à velocidade do vento e da angústia que se instalava nos olhos, cada vez mais perto de nós e da nossa ansiedade. Nada a impedia – a onda fatídica. A cidade tremia, o vento agitava-se e uivava nas varandas, o calor ardia, as mãos imploravam o milagre, o prodígio, as vozes embargadas articulavam rezas e pragas, o povo sofria ,revoltava-se. O crepúsculo tornava-se medonho. O povo, atónito, não queria acreditar.
Quem poderia fazer parar o monstro ? Como fazê-lo recuar ? Talvez que uma chuva bendita jorrasse repentinamente do céu; que o sereno da noite próxima trouxesse finalmente o alívio à paisagem desfigurada e aos espíritos aflitos. A paisagem e as vidas expostas à loucura indómita de pirómanos e outras adversidades.
Mas a noite era seca e quente e o monstro avançou. Eu vi-o descer vertiginosamente, galgar a ravina, estender- se na direcção do mar. O monstro devoraria também a cidade.
Eu vi como as casas iam morrendo, uma aqui, outra além, pelas encostas, como os jardins desapareciam imolados, desprotegidos e inocentes. Os jardins, as grandes árvores, indefesas, os cães perdidos, assustados, a vaguear pelas ruas. A gata MInnie fugiu espavorida e até hoje não voltou. As fruteiras do meu quintal não voltarão a dar frutos. Não haverá bagas de Azevinho no próximo Natal. Não haverá nada na minha casa, na tua e nas outras. O que resta delas é o estranho orgulho das paredes ainda de pé. Sem chão, nem teto, erguem-se sinistras e ausentes, desalmadas, presas à terra por um assombro que as lembranças violadas conseguem, apesar de tudo, suster. Cremados os haveres afundam-se num entulho de cinzas e desolação.
O monstro engoliu a alegria e os sonhos do povo, devastou as terras, sacudiu a ilha, sub-repticiamente, depois recolheu-se e partiu. Vai certamente lançar a devastação noutro qualquer lugar. Assim é o destino imponderável, insensato, misterioso e assassino do Fogo ateado.
O mundo continua apesar da tragédia. Segue-se agora a Regeneração. É Aqui que a memória actua para reactivar as forças na reserva do sentimento. Uma dor adormecida pode tornar-se mais tarde uma pequena raiz de esperança. Apesar dos constrangimentos , toda a História se constrói sobre cinzas : a minha, a tua e as outras. Cada minuto que passa é um momento que morre, um tempo queimado. Só a memória, serena, determinada, o poderá reabilitar.