Toxicodependente internado vítima de cannábis escreve carta a relatar a sua destruição

cannabis1O FN divulga hoje uma carta escrita por um toxicodependente, em tratamento, internado numa comunidade terapêutica com consumo só de cannábis. A missiva foi-nos feita chegar por Nelson Carvalho, diretor da Unidade Operacional de Intervenção em Comportamentos Ilícitos (UCAD), e está a ser hoje divulgada na comunicação social.

Para os que têm dúvidas e consideram a cannábis uma droga “leve”, inócua, inconsequente para a saúde humana, Nelson Carvalho convida a ler e a partilhar este testemunho escrito na primeira pessoa.

“No início de Janeiro deste ano encontrava-me pela manhã a desfolhar um jornal diário de tiragem nacional e deparo-me com uma notícia que prendeu a minha atenção: “Ok a fumar charros e a plantar cannabis”. Li com atenção a notícia e fiquei mais tranquilo, é apenas uma intenção, para já não é uma decisão consumada. No entanto, ao longo das últimas semanas, isto não me sai da cabeça e por esse motivo decidi tornar público apenas alguns pontos da minha vida. O objectivo pelo qual o faço serve apenas para exemplificar aquilo a que muitos chamam de droga leve, no meu caso, trouxe-me consequências muito pesadas. Pedi aos técnicos que me acompanham na Clinica do Outeiro, para corrigirem o texto e ajudarem a divulgar esta mensagem, escrita com sofrimento, com angústia e raiva seguida de muitas lágrimas, para que o meu exemplo, possa surgir de travão a outros.

Chamo-me António (nome fictício), tenho 35 anos e nasci numa família dita normal, com valores morais e regras bem definidas, sempre fui, embora rebelde, uma criança saudável e com muitos amigos. Via, ao longo da minha adolescência, alguns amigos e conhecidos a fumar uns charros, no entanto, naquela altura isso nunca me atraiu, apesar da insistência de alguns. Com 18 anos comecei a trabalhar numa empresa multinacional alemã, a operar na zona norte do país. Sempre fui trabalhador, aproveitava todas as horas extras possíveis e por isso, fruto do meu trabalho, ganhava bem e tinha uma boa vida.

Com 21 anos casei, já tinha carro e comprei casa. A minha ex-mulher estava grávida do meu filho, tudo me corria bem, era feliz, tinha muitos amigos e uma vida social activa. Sempre adorei futebol, principalmente ver os jogos do meu clube do coração e era uma presença assídua em todos os encontros. Foi neste contexto que um dia, um amigo que me acompanhava me ofereceu um charro para fumar. Num primeiro momento disse-lhe que não, ele insistiu, disse-me que ia ficar “zen”, voltei a dizer que não, ele acendeu um para ele, voltou a insistir, acabei por aceitar e dar uma passa. No fim do jogo, fumamos os dois, cada qual o seu charro. Foi nesse dia, com 22 anos, que começou a minha autodestruição. Sempre que ia ver um jogo do meu clube fumava um charro. O consumo desta droga começou de forma ocasional e esporádica, passou a regular, depois a frequente, a diária e por fim já consumia várias vezes ao dia. Com 23 anos, e novamente durante um jogo de futebol fumei um pouco demais, para mim 3 charros nesta fase já era demais. Durante o jogo, senti-me mal, comecei a ficar com os meus sentidos muito apurados, o som era ensurdecedor, tinha a sensação que toda a gente olhava para mim e queriam fazer-me mal. Já não consegui trazer o carro, quando cheguei a casa fechei-me no quarto durante dois dias, não queria falar nem ver ninguém, apenas rezava e queria que aquele mau estar desaparecesse. Com o tempo comecei a sentir um cheiro permanente a podre, um cheiro que só eu sentia. A minha ex-mulher dizia que eu estava a ficar louco (ela não sabia o que se passava, só soube mais tarde). Sempre que fumava uns charros tinha a sensação que o cheiro a podre aliviava ou desaparecia, por isso, comecei a fumar mais, e cada vez mais. Lembro-me que, com o passar do tempo o cheiro a podre começou a ser acompanhado por vultos de familiares que já tinham falecido. Estava cheio de medo, por vezes não queria dormir, outras vezes não conseguia, recusava-me a sair do quarto, passava os dias e as noites a rezar e a acender velas pelos meus familiares, queria que eles não voltassem, que me deixassem em paz, mas isso não acontecia, até que, um dia, chegou a minha casa a policia e o INEM, fui internado compulsivamente.

Nessa altura diziam que tinha uma psicose tóxica, que tinha de parar de fumar haxixe, mas não compreendia a necessidade, afinal, como os meus “amigos” diziam era uma droga leve, era natural. Pior era o tabaco que só tinha químicos. Continuei a fumar haxixe, 5 a 6 charros por dia. Foi uma questão de tempo até que o cheiro a podre e os mortos voltaram a surgir, voltavam a não me deixar dormir, conseguia dormir em média 8 horas a cada 3 dias, voltei a fechar-me no quarto, apenas iluminado pelas velas que acendia. Em 2 anos tive cerca de 30 tentativas de suicídio e outros tantos internamentos em Psiquiatria. Num desses internamentos o Médico Psiquiatra que me acompanhava disse-me que já não tinha uma psicose tóxica, mas sim Esquizofrenia Paranóide, uma doença crónica, que não tem cura, mas sim tratamento. Que ia piorar com o tempo se não parasse de fumar canábis.

Hoje, olho para traz e vejo que esse Psiquiatra tinha razão, afinal a canábis (a única droga que fumei ao longo da minha vida), aquela substância que muita gente apelida de droga leve, que é natural e não faz mal nenhum, trouxe-me elevadas consequências. Há 15 anos atrás tinha, uma família, carro, casa, um ordenado de 1.200,00€ e muitos amigos. Hoje, estou internado na Comunidade Terapêutica Clinica do Outeiro, a tentar refazer a minha vida, estou divorciado, perdi a minha família, o meu carro, a minha casa e o meu emprego… Estou sozinho. Resumindo, hoje não tenho nada, perdi tudo, vivo de apoios sociais e mal tenho dinheiro para um café e uns cigarros. Isto foi o que esta droga leve me deu, uma mão cheia de consequências, por sinal bem pesadas. Desejava há 13 anos atrás ter dito que não, nunca ter experimentado. Tento refazer a minha vida, reconquistar o que perdi, sei que não vai ser fácil, mas ao menos resta-me a esperança e o desejo pessoal que esta legalização não surja, não por mim, pois a mim já me destruiu, mas por todos aqueles que podem vir, como eu, a sofrer por causa desta droga, que muitos chamam Droga Leve.

António (Nome Fictício)

02 de Fevereiro de 2016