Da censura do tempo do salazarismo aos riscos da liberdade de expressão

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Como era o exercício do jornalismo e da escrita nos negros tempos da censura, antes do 25 de Abril de 1974? E que formas de censura subsistirão ainda, sub-repticiamente, nos dias de hoje? Foram estas as questões que resolvemos colocar a duas personalidades da Madeira que, além do prestígio nacional de que hoje desfrutam, foram particularmente activas no âmbito jornalístico nos tempos do antigo regime.

Exercendo a sua profissão de plumitivos em pleno fascismo, estavam sujeitos ao lápis azul alarve dos censores. E ambos convergem precisamente nessa consideração: os censores eram realmente alarves, não primando, de modo nenhum, pelo conhecimento nem pelas capacidades intelectuais, pelo que, pelo menos na Madeira, não era particularmente difícil ‘enganá-los’.

A romancista Helena Marques era, na altura, jornalista no Diário de Notícias da Madeira. A sociedade era conservadora e patriarcal, sendo duplamente difícil, para uma mulher, exercer um mister como o do jornalismo, feudo predominantemente masculino. Ainda por cima, estar sujeita à censura era um peso acrescido.

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Jornalistas tinham de ser hábeis

Para que o jornalista pudesse fazer passar a sua mensagem com suficiente claridade, recorda esta nossa interlocutora, “era necessária uma grande habilidade”.

Era preciso evitar “usar palavras ou expressões que alertassem a censura”, lembra. “Nós, jornalistas daquela altura, chegámos real e rapidamente à conclusão de que de facto aqueles senhores que a exerciam eram pessoas muito incultas. Portanto, havia maneiras de nos exprimirmos que nos permitiam passar a mensagem sem que eles percebessem minimamente o que se estava a passar”.

Essa percepção era clara entre os jornalistas dessas décadas pré-revolucionárias, e o recurso a essas artimanhas semânticas era prática corrente. Havia uma subtileza nos jornalistas de então que não tem correspondência com os actuais, que nunca tiveram de estar sujeitos à canga que representava a censura a cada artigo redigido.

“Quando se fez o 25 de Abril e se acabou com a censura, nós tivemos de passar por uma aprendizagem, porque já nos tínhamos desabituado da linguagem directa clara. Tivemos de esquecer  a linguagem que usávamos anteriormente, e adaptar-nos à nova”, ri-se Helena Marques. “Foi uma experiência extremamente revitalizadora, divertida e alegre, muito reconfortante para nós todos”.

Censores madeirenses “extremamente básicos”

Os censores na Madeira de antigamente eram “extremamente básicos”, vendo mal em tudo, exercendo censura em tudo… mas deixando-se ultrapassar sem perceberem.

“Quando vim trabalhar para Lisboa, é que descobri que realmente censura era aquilo que se fazia cá”… A outra era tão básica, tão estulta, que nem dava para acreditar, realça. De modo que “fazer uma entrevista era um acto heróico”. Entrevistar, por exemplo, um estrangeiro que estivesse em Portugal de férias era complicado, porque o mesmo podia dizer que gostava muito da ilha [da Madeira] mas qualquer menção menos abonatória ao regime suscitava logo complicações.

“De qualquer modo, nesse tempo os jornalistas tinham uma habilidade específica para escrever em entrelinhas, ou sub-repticiamente… Sem usar as expressões que seriam habituais”, recorda.

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Uma realidade “muito consoladora” era a de que o público de então estava “perfeitamente sintonizado” com os jornalistas, encontrando-se totalmente interessado e preparado para descortinar, entre as subtilezas da prosa do repórter, a verdadeira narração dos acontecimentos ou do que fora dito ou feito.

“Pelas conversas que tínhamos ou pelos ecos que nos chegavam, era claro que as pessoas percebiam perfeitamente… Havia uma cumplicidade muito grande entre o jornalista e o leitor… Os leitores que eram de esquerda, obviamente. Havia essa sintonia de opinião, que vinha à superfície. Não era uma coisa que fosse consentida, mas era algo que conseguíamos fazer passar”.

Do Diário de Notícias da Madeira, Helena Marques transitou para o Diário de Notícias de Lisboa [do qual mais tarde havia de ser directora], após passagens por periódicos como ‘A Luta’ ou ‘República’. “Foi realmente um sítio onde eu gostei imenso de estar e trabalhar”, congratula-se. A transição entre o jornalismo ‘camuflado,’ e o mesmo ofício exercido com clareza pode ter causado certa estranheza, a princípio, mas a mesma caminhou a par e passo com um sentimento de exultação pela liberdade que fora conquistada, “nua e pura”… Essa transição “foi, de facto, interessantíssima”.

Hoje em dia, Helena Marques já não acompanha a actualidade das notícias e da comunicação social da mesma forma diária que o fez no passado. Admite que possam existir novas formas de censura, mas não está propriamente a par das mesmas. Mesmo assim, vai sabendo coisas da realidade quotidiana através dos seus filhos – que também são jornalistas. Recorda-se de algumas tentativas de censura e de pressão em jornais pelos quais passou, já depois do 25 de Abril… mas o curioso é que se tratavam de tentativas protagonizadas por elementos do próprio jornal, motivadas por invejas ou descontentamentos, e não por pressões externas.

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 Nos tempos do ‘Comércio do Funchal’

O poeta José Agostinho Baptista, por outro lado, recorda os tempos da juventude e da colaboração no ‘Comércio do Funchal’ admitindo que tinha algum receio da censura e das consequências que pesavam sobre aqueles que ousavam criticar o regime salazarista, mas era muito jovem, com 18, 19 anos.

“No ‘Comércio do Funchal´ éramos quase todos muito jovens, muito idealistas, e acreditávamos num futuro melhor. Acreditávamos na liberdade, na democracia, nessas coisas belas que eram belas mas entretanto foram arruinadas pela natureza humana”, diz.

“No meu tempo imberbe, ainda, tive alguns textos que foram censurados, mas posso dizer que era uma censura tão incipiente, tão pobre, tão medíocre, que era muito fácil contorná-la”, refere. Recorda-se de ter que alterar uma palavra aqui e ali, e com isso uma frase, e com isso um contexto. A censura era muito pobre.

“Vivíamos num regime, digamos, à portuguesa… tão tristonho, tão carente, inclusive, a nível de uma coisa maléfica, maldosa, mesquinha, e atentatória das liberdades como é a censura. Era ridícula, a censura que se praticava neste país, neste caso, na Madeira. Era quase anedótica, pela falta de conhecimento, pela falta de cultura, pela falta de eficácia”. E, portanto, relativamente fácil de contornar. Em Lisboa, admite, era mais complicado.

José Agostinho Baptista fez crítica de espectáculos, de teatro e de cinema em Lisboa, antes do 25 de Abril, sobretudo para o jornal ‘República’, uma publicação de esquerda, onde também pontificou Helena Marques. Nesse jornal, onde chegou a dirigir um suplemento juvenil [com Orlando Neves e Tito Lívio] podia ousar ter um certo atrevimento, porém sempre sujeito ao ‘lápis azul’. Era então por volta de 1971, 72, já depois da experiência de colaboração com o ‘Comércio do Funchal’, e da colaboração poética com o ‘Diário de Lisboa’.

“No ‘República’, eu fiz um jornalismo que tinha a ver com os suplementos juvenis de poesia, mas também com a crítica, e senti sempre alguma liberdade para dizer o que achava que devia dizer. A censura, pelo menos no meu caso, foi sempre mínima. Uma frase, uma palavra, outra palavra”. Sabe, porém, que o mesmo não se passava com outros. E repudia totalmente a censura de então.

Falando um pouco dos tempos do ‘Comércio do Funchal’, José Agostinho Baptista evoca uma publicação fortemente sujeita ao olhar clínico embora medíocre dos censores, “porque tinha uma qualidade, uma coragem e um poder de intervenção a nível nacional que o tornavam demasiado notório, demasiado visível, demasiado alvo de represálias”. Mas, como diz, “era Portugal “, e a inépcia dos censores ajudava.

José Agostinho Baptista: agastado com acusações que lhe foram dirigidas em comentários online

Era “estimulante” viver sob pressão

Como era viver sob a pressão de saber que não se podia dizer tudo o que se pensava? “Era preocupante, mas também estimulante!”, responde. “Até dava um certo gozo. Tinha-se que ser mais imaginativo, mais criativo, um pouco como um jogo de futebol. Hoje uma finta, um remate, é mais importante que um pensamento de trezentas páginas. Quem soubesse fintar melhor, marcava logo o golo”. E o público estava à espera.

Mas as questões relacionadas com a liberdade de expressão não se esgotaram todas com o 25 de Abril. José Agostinho Baptista diz sentir-se hoje “quase tão mal” como se sentia antes da Revolução dos Cravos. Entende não ter liberdade para falar sem ser agredido. “Tenho de estar a medir as palavras, pois vivo num tempo em que o jornalismo me tira a voz. E tenho de ter cuidado, para não me insultarem, não me agredirem. Estou obcecado com isso, estou magoado”,  sublinha.

 Críticas ao DN-Madeira

E porquê? Porque recentemente, expressou, numa entrevista à Lusa, uma opinião sobre o ex-presidente do Governo Regional, Alberto João Jardim. Questionado sobre o mesmo, considerou que, apesar das suas facetas negativas, “à sua maneira, fez muito pela Madeira”. O DN-Madeira colocou a entrevista na sua edição online, para todos verem, ao contrário do que fez com outras entrevistas do poeta, às quais era preciso pagar para aceder. Em período final do jardinismo, a reacção de muitos leitores não foi favorável. Os comentários anónimos ou a coberto de pseudónimo, a criticarem José Agostinho Baptista, foram muitos. Muitos menos foram os comentários assinados com identidades verdadeiras. A polémica espalhou-se pelas redes sociais, e o poeta sentiu a necessidade de vir a terreiro (com uma carta-resposta que o DN-Madeira publicou) defender as suas razões e o seu direito de opinar.

Hoje, não esquece essa polémica. E sente que foi maltratado.

“Em finais de Fevereiro, fui vítima de uma armadilha infame, montada pelo Diário de Notícias do Funchal e por ele executada, em nome de uma falsa e cínica liberdade de expressão”, faz questão de denunciar. O episódio foi “muito desagradável, muito doloroso e com consequências que não quero estar aqui a invocar, mas que poderiam ter algo a ver com a minha saúde nesse período”.

Repudiando os “comentários injustos que fizeram a meu respeito”, entende que a liberdade de expressão entretanto criada, em que todos são livres para achincalhar o próximo anonimamente, nas páginas de um qualquer jornal, não fez melhorar o panorama da livre expressão nos dias de hoje: uma personalidade tem de pesar muito bem as palavras antes de as pronunciar, se não quiser ser vítima dessas campanhas de achincalhamento, alimentadas pelos órgãos de comunicação social que apenas visam vender, aproveitando as polémicas. Essa, entende, é uma subversão da liberdade de expressão, que denuncia. E que, nessa medida,  não se distancia assim tanto dos tempos da censura.

“As formas de censura hoje podem não ser tão directas, tão violentas, tão imediatas. Mas podem ter consequências tão graves quanto tinham na época. Hoje em dia os órgãos de comunicação mandam para o desemprego centenas de jornalistas. E mais ninguém pensa nisso. Não está ninguém preocupado em dizer que foi o ditador A, B ou C que os mandou por razões económicas, que também são políticas, para o desemprego. Isto é um círculo vicioso, miserável, desonesto, e com consequências tão funestas como havia na época”.

No Portugal de outras décadas conheceu “gente que passou mal, que esteve nas prisões, que sofreu. Mas que conseguiu alimentar os filhos. Hoje conheço muitos jornalistas que têm dramas terríveis para subsistirem, e para fazer com que os seus subsistam. Portanto, aqueles que estão convencidos que fazem um jornalismo livre e honesto que respondam a isto, dado que são eles os primeiros a pôr no desemprego companheiros seus, por razões às vezes muito perversas”, conclui.