“Holocausto animal” na Região

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É um assunto complexo, que se reveste de grande importância para uns, e de absolutamente nenhuma para outros. A causa dos direitos dos animais tem movimentado cada vez mais a sociedade madeirense, com a criação, em anos mais recentes, de várias associação que se preocupam com o bem-estar dos nossos amigos que não pertencem à espécie ‘homo sapiens’.
O facto é que podem pertencer, mas mesmo assim são seres vivos sencientes e com direitos. Isto é, deviam tê-los. Pelo menos os direitos mínimos de não serem maltratados, abandonados ou de serem vistos como meros objectos.
A questão é que, na maioria da sociedade portuguesa em geral, e madeirense em particular, os animais têm pouquíssimo peso nas preocupações das pessoas. O sofrimento de um animal nem de longe é visto como equiparável ao de um humano, apesar de sermos todos feitos de carne e sangue. As leis que protegem os animais são insuficientes e pouco aplicadas. E, em inúmeras casas madeirenses, o que não falta são cães presos com correntes mínimas a casotas miseráveis, quando as têm, e que passam por todas as estações do ano praticamente sem qualquer abrigo ou carinho, tendo como única função dar o alarme no caso de algum estranho aparecer. Exactamente como uma campainha animada.
Este tipo de trato dos animais está de tal modo enraizado na forma de pensar da sociedade madeirense que pouca gente repara. E há muito quem caçoe dos bons sentimentos daqueles que vêm algo mais nos seus amigos de quatro patas (ou menos), rotulando-os de ridículos sentimentais.
Já os estrangeiros que nos visitam são muito mais sensíveis a esta temática, razão porque muitos deles ficam horrorizados quando constatam a quantidade de animais abandonados ou a maneira como muitos madeirenses os tratam.

Aumenta o número das associações de protecção animal

Felizmente, nem todos são insensíveis. Há quem se preocupe em melhorar a sorte de que gozam os animais de estimação, e não só. Por isso mesmo se têm multiplicado as associações e as acções que visam defender os direitos dos animais. Entre elas contam-se a Ajuda a Alimentar Cães, O Nosso Refúgio, ANIMAD, PATA, Patinhas Felizes e outras que vieram somar-se à única que durante muito tempo existiu: a Sociedade Protectora dos Animais Domésticos do Funchal (SPAD) e que é hoje contestada por muitos.
Porém, tal como de um lado existe manifesta insensibilidade, do outro existe por vezes um extremar de posições e um fanatismo que acaba por descredibilizar um pouco aqueles que, com argumentos válidos e sólidos, procuram, de forma humana mas pragmática, resolver os problemas concretos colocados pela proliferação de animais errantes.
Mas as posições entrechocam-se. Sobre o que é correcto ou lícito fazer, sobre o que é aceitável, sobre como se deixou a situação chegar a este ponto, sobre quem serão os principais responsáveis.
Fomos em busca de respostas para o problema do abandono dos animais e dos maus tratos de que sofrem. Não chegámos a conclusões absolutas, mas apresentamos alguns dados e opiniões que concorrem para o avaliar da situação.
Ana Bijóias é uma professora de Filosofia que não pode coibir-se de se preocupar com os casos concretos de abandono e maus tratos, mas também com as razões por que isso sucede. Até porque, conforme salienta, se trata, na sua maioria, de animais de companhia, que as pessoas levaram para casa porque queriam, para fazerem, digamos, “parte da família”.
A questão animal é mais ampla, abrangendo os animais que são usados para alimentação. “Em termos culturais, é muito mais difícil falar dessa questão, e claro que está fora de hipótese fazer a apologia do vegetarianismo, em termos globais, até porque vivemos num país e numa região onde o consumo de carne é recorrente. No entanto, convém chamar a atenção das pessoas sobre de que modo são criados os animais que elas consomem, e essa questão deve preocupá-los em termos éticos”.
De facto, na criação intensiva de animais, muitos direitos são violados. Os animais não têm espaço suficiente, são sujeitos a tratamentos com calmantes, antibióticos, hormonas de crescimento… Tudo produtos que se vão reflectir na saúde púlica de quem os consome.
Já a questão dos animais domésticos é, talvez, mais próxima e fácil de entender pela maioria. Para Ana Bijóias, que manteve uma ligação próxima de várias associações da causa animal e também do PAN, o partido que defende os animais, este problema tem de acabar por ter uma solução, na nossa região. Até porque, conforme sublinha, o factor mais importante da nossa economia é o turismo – e os visitantes de países mais desenvolvidos ficam horrorizados com a forma como os animais domésticos são tratados no arquipélago. Inclusive, há estrangeiros que residem na Madeira uma boa parte do ano, e que criaram associações (como a Vamos Lá Madeira) que procura arranjar donos, no estrangeiro, para animais que deles necessitam.
Para a nossa interlocutora, a resposta dada até agora foi insuficiente, e, ao nível da RAM, grandes oportunidades foram desaproveitadas.
“A Madeira é a única região do país que tem um deputado eleito pelo PAN”, sublinha. E o PAN faz parte da coligação Mudança, que gere a Câmara Municipal do Funchal. Mas, em seu entender, não tem havido uma postura mais activa na defesa dos animais. Uma postura que, entende, era absolutamente necessária.
A esterilização dos animais é considerada como indispensável para evitar a propagação do problema. “Um animal de rua, ao fim de um ano, já gerou dezenas de outros animais. Se ele está na rua, os outros também vão estar, o que significa que este problema náo termina”, conclui.

“Holocausto animal”

Ana Bijóias é apenas uma das que pensam desta maneira. E uma das que criticam a SPAD, (Sociedade curiosamente situada na Rua do Matadouro), por assumir o encargo de eutanasiar os animais que ficam durante determinado tempo no canil e gatil do Vasco Gil, cuja gestão está a seu cargo devido a um protocolo estabelecido com a CMF, protocolo esse que “terminou”, e “não foi estabelecido um protocolo novo”.
Parece que haverá a renovação do antigo, não se sabe muito bem em que moldes, por enquanto. O protocolo previa a utilização de uma verba de dezenas de milhar de euros, destinada a esterilizações, a vacinas e também a abates – mas estes não seriam a norma. Porém, o caso é que ainda recentemente o DN Funchal noticiou que os abates continuam muito acima do desejado, com números cinco vezes superiores aos da esterilização. Isto, apesar de em 2014 o Canil Municipal ter reduzido os animais abatidos. 1227 animais foram abatidos o ano transacto, mas apenas foram esterilizados 248 cães e gatos abandonados. Uma situação que o advogado João Freitas, também ligado a várias associações de protecção ao animais, não hesita em classificar de “holocausto animal”.

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A imagem é forte, mas se pensarmos no número de animais que são “eutanasiados” por ano – eufemismo para mortos por injecção letal – e gostarmos de animais, certamente não deixaremos de ficar impressionados. E é por isto que a SPAD fica mal na fotografia – por uma associação protectora admitir matar animais como solução para a vaga sempre crescente de novos abandonados que vão aparecendo.

“As outras associações não recebem um tostão das entidades oficiais – mas nunca abatem”, afirma Ana Bijóias. “E conseguem esterilizá-los e tratá-los – e muitos deles são recolhidos num estado lastimável”.
João Freitas, que está ligado á associação Ajuda a Alimentar Cães, tem tentado influenciar as forças políticas da Região no sentido de transformar o canil do Vasco Gil num local de esterilização e “devolução à natureza” dos animais abandonados, acabando-se assim definitivamente com o abate. Uma resolução nesse sentido passou na CMF, numa iniciativa da CDU, apoiada pelo CDS e pelo PSD. A coligação Mudança introduziu, porém, alterações, no sentido de não parar os abates de imediato, “continuando-se numa mescla entre abate e tentativa de controlo através de esterilização”.
Só que, afirma João Freitas, “continua-se a abater e nada foi feito no que diz respeito ao controlo”. A CMF tem um protocolo de esterilização com a associação AMAW (Associação Madeira Animal Welfare), cujo presidente é o veterinário Eduardo Teixeira, da Vetfunchal,e que vive de donativos. No ano passado, fizeram 1600 esterilizações, e no Porto Santo, em três dias, fizeram 132.
A CMF, diz João Freitas, tem um protocolo com a AMAW para fazer esterilizações (dez animais por mês) desde Novembro de 2014, e até agora, ao abrigo deste protocolo, não fez nenhuma. “Com a agravante de a Sociedade que se diz Protectora dos Animais, com quem a CMF tem um protocolo para a gestão do Vasco Gil, ter feito apenas 200 e tal esterilizações durante o ano”.
Um protocolo que, recorda também, era para já ter sido revisto. “Continuamos a trabalhar ao abrigo do protocolo antigo, não sei com que fundamento legal”. E esse protocolo, sublinha, “é uma verdadeira desgraça. Há nele termos que até me arrepiam quanto ao que são considerados animais ‘viáveis’ ou ‘inviáveis'”.
Os números do abate, reforça, são efectuados em “animais saudáveis, sobretudo canídeos”. Quanto aos gatos, “nem há números”.
Um panorama, portanto, pouco animador.
Para João Freitas, o maior problemas que enfrentam as associações de ajuda aos animais hoje em dia é a falta de sensibilização das pessoas.
“Ainda estamos um bocadinho numa Idade Média, nesse capítulo. Parte da nossa população trata os animais realmente duma maneira que é doloroso ver. Vai existindo uma maior consciencialização, e há gente mais esclarecida, mas no cômputo geral, existe uma grande falta de sensibilidade. Os animais são simplesmente abandonados, maltratados”. E pouca gente se importa. “A mentalidade está a mudar, mas precisamos de trabalhar muito nesse sentido. E temos de acabar definitivamente com os abates dos animais, e instituir um programa de esterilizações em massa, que substitua esse abate”. Algo que não está a ser feito, nem se encontra tão-pouco sequer instituído.

António Martins, veterinário: é necessário mudar mentalidades

Esta posição de preocupação encontra expressão também nas palavras de veterinários como António Martins, que colabora com a associação Patinhas Felizes, do Funchal, que não tens fins lucrativos. “É da minha parte ético ajudar aqueles que também tentam ajudar”, diz. “Eles querem apenas que os animais sejam entregues a pessoas que gostam deles, e, ao contrário de outras associações, não cobram rigorosamente nada a quem os vem buscar. O cão, no caso de ser errante (sem dono) já vem vacinado e desparasitado”.
António Martins tem a sede do seu trabalho na costa norte da ilha, mas trabalha um pouco por toda a Madeira. E tem constatado situações chocantes de animais abandonados.
Referindo-se mais particularmente ao norte da ilha, refere que se deparou com imensos abandonos e maus tratos a animais, para além de descuido e negligência por parte dos donos.
“Neste momento, as coisas já estão invertidas, e há um cuidado maior com a prevenção”, assegura. Este veterinário andou pelas escolas a tentar sensibilizar os mais novos para o facto de que os animais também têm sentimentos. Só assim, entende, se podem mudar sensibilidades. Chegou a ser chamado por escolas que se deparavam com casos de miúdos que maltratavam animais. Ao sair, tinha deixado os culpados lavados em lágrimas, finalmente conscientes do mal que tinham feito, e de que aquele animal era um ser vivo senciente, não um objecto.
“Procurei começar a incutir-lhes determinados conceitos, e eles em casa faziam o resto do trabalho junto da sua família”, explica. Cinco anos depois do começo da sua actividade, constata “resultados fantásticos”, com uma muito maior sensibilização dos mais jovens para a protecção aos animais que, todavia, continuam a ser abandonados em serranias como o Paul da Serra, a Santa do Porto Moniz… “Ainda há alguns casos. Mas mesmo assim, nestas zonas, tenho algumas pessoas que são amantes dos animais, e entre nós, tentamos arranjar proprietários”.
Lamentavelmente, constata, os portugueses “estão muito atrasados em relação a qualquer parte da Europa civilizada” no que diz respeito à protecção dos animais. “Felizmente agora mudou a lei em relação aos maus tratos, mas não é só mudar a lei, há que aplicá-la. Muitas vezes as entidades competentes estão informadas, mas não fazem nada… ou pouco fazem. Eu inclusive já fiz alguns relatos de maus tratos, e não tenho qualquer feedback do resultado”.
Relativamente à SPAD, a sociedade tão contestada, e à ingrata tarefa que tem entre mãos, de eutanasiar os animais que enchem as suas jaulas e canis, António Martins entende que, como sociedade protectora, “a parte de protecção animal por parte deles está muito aquém. O que é que isto quer dizer? Deviam fazer mais, como eu tentei fazer no norte da ilha. Ir às escolas tentar mudar mentalidades das crianças. Agir, promover tudo e mais alguma coisa, para poder transformar as coisas daqui a alguns anos. As sociedades protectoras só fazem sentido se fizerem este trabalho. Se não o fizerem, a mentalidade das pessoas será sempre a mesma, os animais continuarão a parir, e os animais abandonados continuarão a ser deixados à porta da SPAD. A balança continuará descompensada”.
Se há uma década se tivessem preocupado com isso, assevera, hoje não teriam de estar a proceder ao número de abates que se verificam anualmente e não haveriam tantos animais abandonados. “Não é só dizer: somos uma sociedade protectora, temos muitos animais abandonados, não temos mais espaço, e agora vamos começar a abatê-los”. Quanto a conclusões, e às defesas que a SPAD apresenta, responde com matemática simples: “É fácil de ver, quantos entram, e quantos são dados para adopção”.

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Eutanásia não é forma de olhar a problemática dos animais errantes

Com estes mesmos problemas preocupa-se a associação Nosso Refúgio. Uma das dirigentes, Miriam Santos, explica-nos que o fulcro da sua actividade é recolher animais errantes, esterilizá-los e vaciná-los e entregá-los a quem os adopta, sem qualquer custo. “Aqueles que não conseguimos recolher, fazemos o tratamento necessário e devolvemos ao local onde eles se encontram”. Assim, pelo menos, terão uma hipótese de ser recolhidos e tratados por alguém. Não foram abatidos, uma solução definitiva.
Miriam Santos diz-nos que actuam sobretudo no Funchal, mas também procuram ajudar animais noutros sítios, se necessário. E são muitos. Para a nossa interlocutora, não se tem visto qualquer melhoria no número de animais abandonados nas ruas: “Está cada vez pior”, garante, mesmo porque a crise obrigou muita gente a emigrar ou a mudar de casa, e muitos abandonam os animais. “Nalguns casos, até pode ser uma desculpa para as pessoas se livrarem do animal”.
Miriam também não aceita a forma como a SPAD exerce a sua actividade: “Para nós o número de esterilizações teria de equivaler ao dos animais que dão entrada na SPAD, para que consigamos ver algum resultado. Para nós, está posta de parte a hipótese de eutanasiarmos um animal, a menos que o mesmo se encontre em fase terminal. Falta de espaço ou outro motivo, para nós é inaceitável. Enquanto associação de defesa dos animais, não praticamos a eutanásia. Existem outras formas de abordar a problemática dos animais errantes. E para nós, esta não é uma delas”.
Esta responsável alerta para o facto de que as associações de protecção dos animais necessitam de mais apoio por parte das entidades oficiais e privadas: “A nível financeiro, as associações estão num estado caótico, a nível de meios”, queixa-se. Mais ajuda, precisa-se.

(Uma nota final: ontem tentámos contactar telefonicamente a SPAD. Fomos remetidos por quem nos atendeu e a quem explicámos ao que vínhamos, para um email. Colocámos por escrito as nossas questões. Ontem, até ao final da noite, não recebemos qualquer resposta para nenhum dos contactos que deixámos. Estamos naturalmente ainda abertos à manifestação de posição própria por parte da SPAD).