Refrescar e prosseguir

Nem sempre temos a possibilidade, serena e conseguida, de nos fazermos ouvir. Acredito mesmo que, num diálogo ou numa conversa em grupo mais alargado, todos os participantes, – e não faço distinção de género -, fazem um esforço empenhado para se fazerem ouvir e pouco, ou nenhum, para ouvirem o outro, os outros, e tentarem perceber o que é tentado ser-lhes dito. O ponto de partida desta atitude – egoísta, narcisista, egocêntrica? – de indisponibilidade e aparente desinteresse, radica na ideia, falsa, de que poucos serão os que, exteriorizando as suas ideias e opiniões superarão as expectativas e surpreenderão pela positiva os circunstantes ao ponto de os obrigarem a ouvi-los e a dispensar-lhes a atenção naturalmente exigível. Podem perder-se, assim, por diletantismo e ridícula autossuficiência, razões de sobra de estudo e de reflexão. Também as palavras, algumas palavras, e os conceitos, alguns conceitos, exercem muitas vezes uma negativa influência nesta postura, digamos, demissionária; pelo cansaço que a moda determina, uso indevido, rotina, lógica publicitária ou propagandística, falta de criatividade e imaginação de fraco caudal, a resistência que se lhes opõe inviabiliza o contacto, a troca de impressões e a mera audição de uma opinião, de um raciocínio ou, até, de uma clarividente tese, curto-circuitando a comunicação e a riqueza que ela pode desencadear.

Por todas estas razões, considerando-as, é quase corajosamente desafiante chegar aqui, agora, a escassos dias da evocação comemorativa do Dia da Região Autónoma da Madeira, 1 de Julho, e, num curto artigo de opinião, lembrá-lo em todo o seu significado e tentar colocá-lo fora do adormecimento e da mera fruição egoísta do feriado respectivo.

O Dia da Região é o dia da Autonomia e, sendo-o, é também o dia da democracia, com a qual necessariamente se entrecruza e confunde, transformando a efeméride num assinalável momento de reafirmação do nosso apego a essas realidades que de há 41 anos a esta parte, por força da entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa a 25 de Abril de 1976, influenciaram as nossas vidas, mudaram-nas, enriqueceram-nas e rechearam-nas da esperança de que em momento nenhum quisemos enfraquecer, convencidos de estarmos nos caminhos certos: os da liberdade, da tolerância, do desenvolvimento, da paz e da construção harmónica de um futuro melhor para todos.

Estes anos volvidos, – já lá vão mais de 43, a caminho do meio século, desde que esses lúcidos e corajosos militares, os capitães de Abril, puseram fim à ditadura e abriram caminho ao sonho -, e, mesmo sem qualquer preocupação de rigor que a natureza deste texto não inspira, “deitar contas à vida” da autonomia mostra-nos a justiça da vontade de a fazer, a razão das lutas que a precederam, a determinação constituinte que as viabilizou na lei fundamental, – para a Madeira e para os Açores -, e para além de tudo o que a convicção e a emoção mantêm vivo em todos nós, também a razão confirma, organiza, disciplina e enaltece o que qualquer apreciação descuidada pode constatar: que o desenvolvimento económico é uma realidade, que nos domínios político, educativo, cultural e social é enorme o e que o fosso que os separa de um passado cinzento e sombrio de triste desesperança e desencanto, – será que entre 28 de Maio de 1926 e 25 de Abril de 1974, alguma vez houve “encanto” -, é abissal.

Não farei o balanço. Quem viveu o quotidiano das transformações ocorridas é capaz de o fazer; mas sabe também que todo o longo processo decorrido foi chamuscando a ideia, as palavras, instilando fadiga, descrença, descrédito e, tendencialmente, nutrindo a ideia de que, afinal, a perversão dos actos, de alguns actos, e o desacerto nos comportamentos, manchavam indelevelmente a autonomia e, por essa via, a democracia, sem a consciência de que esta, de cada vez que era mal tratada, ignorada, subvertida, ridicularizada (às vezes), e desvalorizada era a autonomia a vergastada, a desconsiderada, a suspeita, a culpada.

A Constituição, o Estatuto provisório e, finalmente, o definitivo, na formatação legal da autonomia, num processo que, naturalmente, todos assumiram com o seu dinamismo próprio, deram à Região as necessárias e indispensáveis ferramentas da utilidade, do bom senso, e do caminho para o sucesso, pena foi que apenas uma parte delas tivesse sido utilizada e, vagabundeando por entre o politiqueirismo corriqueiro como prática, pela demagogia incontida, por um certo autoritarismo mal disfarçado, por algum desrespeito institucional, por querelas incompreensíveis e dispensáveis, pelo incumprimento de regras que as boas práticas nos tinham ensinado a ter como modelos executáveis, os responsáveis maiores, com a complacência cúmplice, no mínimo, da comunicação social, deixassem, como consequência, a perda de entusiasmo, a desconfiança, a indiferença, e a quebra de vínculo que o logro, ainda que parcelar, e não comprometedor do essencial, irremediavelmente determina.

O poder, cuja natureza conceptual caracteriza como centralista, graças à tolerância que a democracia inspira, abriu mão de uma parte e distribuiu-o por estâncias mais próximas daqueles a quem se destina a sua acção; descentralizou, autonomizou, responsabilizou, cumpriu o que a modernidade e a civilização exigiam e a Autonomia vingou e floresceu. Importa, agora, evitar que estiole, que anemize, que morra; muito há, ainda, por cumprir.

Comportamentos ponderados, renovados, imaginosos, criativos e responsáveis poderão dar o novo impulso de que a Autonomia vai necessitando. É nessa perspectiva e com essa ambição que, nestas páginas, deixo o meu testemunho, a minha homenagem e o meu desafio a esse grande adquirido da democracia: a Autonomia Político-Administrativa do Arquipélago da Madeira, no dia em que, em 2017, se evoca e comemora mais um aniversário da sua legalidade, legitimidade e exercício, ocasião de excelência para o reacender da chama do que ela tem de mais reconhecível, significante, gratificante e nobre.

PS:

Quero deixar expressa a minha incondicional solidariedade para com as muitas vítimas dos trágicos incêndios ocorridos em Pedrógão Grande, endereçando às famílias dos que, infelizmente, partiram, as minhas mais sentidas condolências.

_____________________________________

Nota: o autor deste texto escreve de acordo com a antiga ortografia.