Um conto de Natal: Flor em chão de pedra

florPela primeira vez, nessa noite, sentia nos ossos a frieza extrema do chão empedrado.

Acabara de despertar do torpor induzido pela garrafa de “Ganita” rasca. O travo azedo na boca revolveu-lhe as entranhas desabituadas a uma refeição decente. O líquido escuro e agreste era, desde há alguns anos, o seu único companheiro na solidão das ruelas escuras da cidade. Também ele a enganava, é verdade. Entorpecia-lhe e amainava as agruras do passado e do presente, mas negava-lhe um futuro. Neste pacto só ela ficava a perder. Com o vício se deitava e por ele reclamava  assim que a consciência teimava na tortura das memórias.

— Sim, bebo para me esquecer! — As palavras saíam turvas de raiva e de amargura, sempre que pressentia os olhares de recriminação e de piedade dos que tinham nome, uma cara, um teto, uma vida… Queria agredi-los, mas as forças  esvaíam-se no balbuciar confuso de quem há muito abandonou a sua essência.

Uma vez mais, não se deu conta de que a noite caíra e a cidade se tornara cúmplice de silêncios e de medos abafados. Uma vez mais, apagou-se na escuridão do vício para não encarar a luz da realidade. Ena, a carraspana fora maior à conta do espírito natalício, pensou. Mais gente nas ruas, mais corações condoídos, logo mais euros para diluir no copo de quarto de litro. Esboçou um sorriso na boca desdentada como que a desdenhar da hipocrisia destes dias. Também os outros pagavam para não ver a realidade.

Mas depressa as marcas deixadas por uma existência de sucessivos abusos e negações fizeram o seu corpo, ainda jovem, contorcer-se de dor, assim que tentou levantar-se. Olhou em redor, tentando descobrir em que degrau, sarjeta ou soleira havia desmaiado desta vez. Era apenas mais uma das ruas do Funchal, numa madrugada qualquer, de céu estrelado e gambiarras coloridas.

Uma montra na penumbra, porém, fê-la estacar. A imagem de um corpo envelhecido, gasto, de olhar baço e esgar perdido rasgava o reflexo no vidro. Olhando para os cabelos ralos, retesados de sujidade, ninguém acreditaria que aquela cabeça havia um dia ostentado uma cabeleira farta, ondulada, feminina. Mais do que sem-abrigo, sentiu-se um lixo, um desperdício qualquer jogado a um canto, não só pelo aspeto de miséria, mas por todas as perdas que aquela figura representava. Toda ela era, em carne viva, um soluço de derrota.

Lágrimas doridas queimaram-lhe os olhos, assim que percebeu a carita faceira do Menino Jesus no interior da montra. Olhava-a com compaixão, sem culpas, nem censuras.

— Que fiz eu, meu Deus? — sussurrou, apertando as mãos ao peito, caindo de joelhos sob o peso da amarga revelação.

Na noite calma e fria, só a lamparina de azeite alumiando a figurinha no topo da escadinha tremeluzia alegremente. Embaladas pela dança quente da pequena chama, chegaram devagarinho as lembranças de outras Festas: o rodopio das limpezas, a azáfama da matança do porco, a amassadura dos bolos de mel que espalhavam pela casa aromas exóticos de outras paragens, os temperos fortes da carne-vinho-e-alhos, os parentes que chegavam com sotaque estrangeiro e dentes de ouro… A família… Claro, como poderia esquecer os seus pequenitos que, um dia, deixou sem comida para saciar o vício às escondidas no terreiro da velha Gertrudes.

Vieram então as brigas, a frustração, e o hábito vil tomou conta da sua existência. Daí até à perdição, à rua e à pedincha foi um passo curto, e de lá nunca mais saíra. A coragem para encarar os filhos, os pais, o marido e a sua própria consciência fora afogada na dependência. Sabia que dela se envergonhavam. Faltavam-lhe as palavras para pedir ajuda.

Olhou novamente para aquele Menino que não tivera vergonha de nascer sem teto e o coração estremeceu à lembrança do nascimento dos filhos. Quis desesperadamente abraçá-los, sentir o cheiro da sua pele, afagar os cabelos sedosos, beijar os dedos pequeninos, frágeis, que costumavam descansar no seu peito enquanto os adormecia ao colo.

— Dorme, dorme, meu menino, que a mãezinha já lá vem… —, cantava baixinho, embalando-se a si própria e chorando convulsivamente. As lágrimas saltavam à velocidade do turbilhão das suas memórias. Foi o calor de Natais passados, a ternura do primeiro palrar das crianças, a quietude das tardes de Verão velando pelo sono dos seus anjos. Foi o sobressalto dos primeiros dentes, a apoquentação do almoço a tempo e horas… Sentia, sentia, enfim, sem rede nem anestesias. Não estava seca por dentro como chegara a pensar. Ainda experimentava nos lábios, nos ouvidos, na pele, os bons e os maus momentos da vida. Ainda havia esperança!

Percebeu, ao olhar para a pequena imagem, que os milagres acontecem todos os dias, simples ou complexos, aos pobres e aos ricos. Basta é dar-lhes atenção!

Nesse momento, começavam a sair as primeiras pessoas da Missa do Galo. Poucas repararam na mulher que caminhava erguida, com passo firme, em direcção à madrugada estrelada.