Reescrever a História, desvirtuando-a

Por ocasião do 49º aniversário da “Revolução dos Cravos” surgiram no espaço público regional declarações de personalidades locais em que a reescrita da nossa história recente é por demais evidente.

Assim, no programa “Interesse Público” transmitido na passada 4ª feira, dia 26 de Abril, na RTP-M, o historiador Paulo Miguel Rodrigues tentou convencer-nos que o 25 de Abril não chegou à Madeira apenas a 1 de Maio, na medida em que os sinais de mudança, segundo a sua douta tese, ter-se-iam verificado já antes da manifestação realizada por ocasião do Dia Internacional do Trabalhador.

O referido professor da Universidade da Madeira invocou que essa leitura decorre do noticiário publicado nos jornais diários locais, embora simultaneamente entrasse em contradição quando referiu que a única alteração fora o afastamento do governador civil de então, à semelhança do ocorrido no restante território nacional, uma vez que, por exemplo, o presidente da Junta Geral mantinha-se em funções.

Quem se reclama da história e ainda por cima da contemporânea devia ter o cuidado e a honestidade do respeito pelo rigor histórico. E não o de desvirtuar essa mesma história, deturpando-a.

Na verdade, os factos em redor do 25 de Abril na Madeira falam por si. Os acontecimentos então ocorridos não permitem diferentes leituras, ainda para mais quando os próprios jornais publicados à época são suficientemente elucidativos.

Ora, a 25 de Abril de 1974 era comandante militar da Madeira o brigadeiro Vasco Lopes da Eira – um oficial aqui colocado pelo regime deposto, sem qualquer envolvimento no Movimento das Forças Armadas -, que  no dia 29 desse mês de Abril promoveu uma conferência de imprensa, no Palácio de São Lourenço, para afirmar que (cito) “tem o governo militar da Madeira se empenhado em que a transformação política que se registou no país não afecte a vida da Madeira”(fim de citação). Na mesma ocasião, em conformidade com o texto inserto no “Diário de Notícias” local – que foi dirigido durante mais de quatro décadas pelo dr. Alberto de Araújo, deputado à Assembleia Nacional pelo círculo da Madeira do partido único – o aludido militar referia que a sua manutenção em funções significava que “tem o apoio da JSN”. Vasco da Eira fez ainda questão de dizer que “os membros do antigo governo estão instalados nas dependências que o Governo do Distrito reserva para os seus hóspedes mais ilustres e o senhor Almirante Américo Thomaz encontrasse nos mesmos aposentos que ocupou quando visitou esta Ilha como Chefe de Estado”. (vide “DN” da Madeira de 30/4/74)

Paralelamente os agentes da DGS (a nova designação da PIDE) pavoneavam-se armados pela cidade do Funchal, frequentando cafés, como se nada de novo se estivesse a passar no país. Recorde-se, por outro lado, que no próprio dia 25 de Abri o semanário ”Comércio do Funchal” ( o memorável jornal “cor-de-rosa”) ainda foi submetido à censura. E, por último, anote-se que o já mencionado brigadeiro Lopes da Eira entretanto tudo fez para impedir a maior manifestação até hoje aqui realizada, a do 1º de Maio de 1974.

Perante este quadro, o grupo do “Comércio do Funchal” decidiu remeter para a Comissão Coordenadora do MFA um telegrama manifestando a nossa preocupação pelo desenrolar dos acontecimentos e solicitando a adopção de medidas – telegrama esse cujo envio os serviços da Marconi tentaram obstaculizar.

E seria em resultado dessas pressões que a imprensa regional datada de 1 de Maio publica a exoneração de Lopes da Eira e a sua substituição pelo tenente-coronel Carlos Azeredo, ao mesmo tempo que anuncia o regresso a Lisboa do ex-governador do distrito, comandante Daniel Farrajota Rocheta.

Nestas circunstâncias onde é que o doutorado em História Contemporânea pela Universidade da Madeira detectou as mudanças que propagandeou na noite da última quarta-feira? Onde estão as suas fontes para provar o contrário do que aqui expresso com base, repito, na imprensa e na minha própria vivência pessoal, dada a ligação que mantinha com o “C.F”?

Lamentavelmente, não é a 1ª vez que o citado professor desvirtua, deturpa a verdade histórica. Já o fez no livro intitulado “Dicionário breve da história da autonomia da Madeira”, designadamente quando – a propósito do engenho explosivo que a Flama colocou na estrada para o aeroporto por ocasião da deslocação à Madeira na campanha para as eleições presidenciais de 1976 de Otelo Saraiva de Carvalho – refere que a bomba fora mandada desactivar pela própria organização separatista de carácter terrorista.

Ora, quem consultar o insuspeito “Jornal da Madeira” de Junho desse ano poderá ler que é uma criança em idade escolar que detecta a existência da carga explosiva. Ou seja, o propagandeado gesto de alegada magnanimidade da organização terrorista – que o poder regional erigiu posteriormente em gente “heróica” – para proteger as crianças que acompanhariam o candidato Otelo na deslocação no autocarro constitui uma clara forma de manipulação e de falsificação histórica.

No mesmo sentido se pronunciou o trumpista mor do reino. A criatura que ao longo de décadas hostilizou o 25 de Abril, que sempre se recusou a celebrar a data com dignidade no dia próprio – ora, pretendendo assinalá-lo a 24 e outras vezes a 26 – e que pretendeu transformar o 25 de Novembro em data maior da nossa história democrática, veio agora hipocritamente defender que é preciso homenagear todos os militares que se envolveram no derrube da ditadura do Estado Novo.

Quem a um ano de Abril de 1974 escreveu na “Voz da Madeira” um texto com o sugestivo título “A ANP ou a bomba” em que tecia loas ao regime e criticava inclusive a designada “Ala liberal” não tem qualquer autoridade moral para se reivindicar do 25 de Abril.  Uma vez que em nada contribuiu para que tivesse lugar e pior ainda tudo fez para o denegrir.

 

*por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.