A tempestade em curso

A edição de 23 de Setembro p.p. do semanário “Expresso” inseria uma sondagem efectuada pelo ICS/ISCTE em Portugal Continental que, em síntese, revelava que a maioria dos portugueses inquiridos já corta no lazer, na luz e no gás e/ou água; metade não receia perder o emprego, mas a maioria teme deixar de poder pagar contas;48% dizem viver com dificuldade com os seus actuais rendimentos (mais sete pontos do que há seis meses); 37% assumem que cortaram no consumo de alguns produtos de primeira necessidade; 19% em consultas, medicamentos e outras despesas de saúde e 62% dizem que diminuíram o uso doméstico de electricidade, gás e/ou água.

Entre os que diminuíram aqueles consumos, encontram-se 54% dos que assumem ainda viver de forma confortável ou satisfatória; 54% dos portugueses com qualificações superiores e 67% dos que estão em plena idade laboral, entre os 45 e os 64 anos e quase 2/3 dos reformados.

Questionados sobre as expectativas para o futuro em matéria de preços, 87% opina que o pior ainda está para vir. Daí que cerca de 2/3 dos entrevistados digam-se “muito” ou “algo” preocupados com a possibilidade de deixarem de conseguir pagar as contas de luz, de água ou de gás; enquanto que 57% exprimem o mesmo grau de preocupação de “conseguirem pagar a renda ou a prestação da casa”.

AS conclusões são por demais evidentes: os portugueses estão já a sentir os efeitos da escalada de preços na alimentação, na energia e nos combustíveis e dos aumentos das taxas de juros decretados pelo BCE (já ocorreram dois nos últimos meses e preparam-se outros a curto prazo), e percepcionam que a probabilidade de tudo piorar é grande. Ou seja, não precisam que o Presidente da República o diga ou que o Ministro da Economia adiante que não vamos ter “um mar de rosas”. Basta estarem atentos às notícias para perceberem isso mesmo que, de resto, comprovam diariamente quando se deslocam ao supermercado ou quando pagam contas. A título de exemplo, recorde-se que a inflação atingiu no mês passado o valor mais alto (9,3%) nos últimos 30 anos e que as rendas de casa aumentaram em média no país mais de 40% em apenas cinco anos (nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto mais de 50%).

Por outro lado, conhecendo-se a dimensão dos apoios anunciados pelo governo e os projectados aumentos quer nos salários quer nas pensões, a conclusão é óbvia: o poder de compra da generalidade dos portugueses vai baixar. O que equivale a dizer que vão crescer as dificuldades com que se vão deparar no seu dia-a-dia.

Já agora, para os mais distraídos ou que procuram desviar o foco para o quintal do vizinho, convém não ignorar que uma sondagem da mesma natureza se efectuada entre nós não redundaria em resultados diferentes, muito pelo contrário. Uma Região com o maior risco de pobreza, a maior taxa de desemprego e o menor poder de compra do país só pode evidenciar sinais acrescidos de preocupação.

Quase 50 anos após o 25 de Abril, o 1º direito (o direito constitucional a uma habitação condigna) constitui um bem cada vez mais inacessível a um elevado número de portugueses. Não apenas aos milhares que no Continente e na Região habitam em condições precárias. Mas também pela crescente dificuldade em aceder ao aluguer de uma habitação com renda acessível ou à sua aquisição. Uma realidade que não se limita às cidades de Lisboa e do Porto mas que se estende também ao Funchal. Obstáculos com que se deparam igualmente os estudantes universitários deslocados que, por este andar, correm o sério risco de vir a não poderem concluir a sua formação escolar.

As crises energética e económica agravadas pela guerra na Ucrânia levaram, aliás, bem recentemente o presidente do Banco Mundial a assumir uma possível recessão na Europa. Na Alemanha, por exemplo, as previsões para o próximo ano apontam precisamente nesse sentido. E com tanta incerteza no horizonte, nada garante que Portugal possa continuar a crescer em 2023, como asseverou a semana passada o primeiro-ministro na Assembleia da República. Já vai sendo tempo de os políticos quer no poder quer na oposição deixarem de  recorrer a truques ou à venda de ilusões. A propósito, que credibilidade pode ter um partido como o PSD, que há meia dúzia de anos pretendia proceder a um corte substancial nas pensões, vir agora na sequência do previsto corte no respectivo valor-base das mesmas, reclamar que um hipotético seu governo não o faria?

Voltando à aludida sondagem, há um outro indicador que suscita naturalmente apreensão: o   saber-se que os portugueses mais atingidos pela crise já querem cedências à Rússia na guerra com a Ucrânia. Uma reacção legítima de quem percepciona que o intensificar das suas dificuldades decorrem das consequências da guerra. A que não será certamente alheia a dualidade de critérios de um governo que se apressa a preparar um corte nas pensões no futuro, ao mesmo tempo que resiste, quase até ao fim, em taxar os lucros excessivos das empresas que estão a ganhar com o conflito militar.

O crescimento da extrema-direita um pouco por toda a Europa – Suécia e Itália são os últimos exemplos- terá por certo razões, explicações diversas. Diferentes de país para país.

A circunstância de nas democracias ocidentais, a desigualdade atingir, desde 2008, níveis que só conheceu em 1929, por ocasião da Grande Depressão, não é, não deveria ser um factor a menosprezar. Por outras palavras, é curto limitar-se a alertar para os perigos decorrentes da ascensão dessa direita populista. Cercear o seu avanço implica responder aos motivos que originam o desencanto dos cidadãos. Impõe resolver os problemas, as carências com que se confrontam. Na saúde, na habitação, na educação, nas suas condições de vida.

 

*  por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

 

Post-Scriptum: 1) Condenação/Silêncio: Recentemente ficou a saber-se que pela 14ª vez na última década, Portugal foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por violação da liberdade de expressão. Desta vez, em causa estava um processo intentado por um conhecidíssimo empresário madeirense contra o quinzenário Garajau. Uma condenação que, como outrora bastas vezes sucedeu, foi revelada pela imprensa continental, uma vez que a local fez silêncio. E depois ainda tem a lata de proclamar-se independente!

2) Chumbo: A recusa pela Câmara Municipal do Funchal de permitir a instalação pela cadeia de supermercados Lidl de um espaço no Largo Severiano Ferraz é motivada exclusivamente por motivos urbanísticos e de mobilidade ou imperou também uma forma de proteccionismo às cadeias concorrentes, Pingo Doce e Continente? Com as demais instaladas no centro da cidade é natural que a alemã não queira ficar prejudicada depois de no passado ter sido pura e simplesmente impedida de cá entrar…

3) “Normalização” em curso: Se dúvidas houvesse, elas estão completamente desfeitas. O PSD a nível nacional, tal como já sucede nos Açores, prepara-se para acolher o Chega no seu projecto de tentativa de regresso ao poder. O apoio, mais ainda, o empenho na eleição na Assembleia da República de um seu vice-presidente tornou claro o caminho que pretende percorrer o PSD de Luís Montenegro.

4) ADN: “Quem fizer confusão vai para a rua”. A ameaça repetida pelo actual inquilino da Quinta das Angústias é a demonstração clara de como funciona a democracia lá para os lados da Rua dos Netos. No tempo do seu antecessor, as regras eram também essas. É assim que funciona a “máfia, no bom sentido”. O delito de opinião é duramente pago.

5) “Casa roubada”: As denúncias já tinham sido feitas pelas jogadoras do Rio Ave, mas nem o clube, nem a Federação Portuguesa de Futebol adoptaram então quaisquer medidas. Foi preciso o assédio sexual se tornar público para o clube e a FPF agirem. Enquanto isso, na Igreja continua a haver quem trata a pedofilia como um pecado e não como um crime!