Entrevista FN (2): “O aumento do custo de vida (…) foi brutal”

Fotos: Rui Marote

Sérgio Gonçalves tem-se multiplicado em insistências: o Governo Regional deve aplicar o diferencial fiscal de 30% no IRS e no IVA, na actual conjuntura. Trata-se, sublinha, de uma medida essencial numa região que, neste momento, tem uma fatia significativa da sua em risco de pobreza, mas que continua a alimentar a teoria do “inimigo externo” para desviar atenções.

FN- Uma das questões em que tem insistido bastante nos últimos tempos tem sido a necessidade de aplicação do diferencial fiscal de 30% por parte do Governo Regional, no IRS e no IVA. O GR tem argumentado ao longo dos anos que isso de alguma forma afectaria a estabilidade financeira da RAM… Porque é que, no seu entender, é tão adequado que esta medida seja tomada?

– Desde logo, mais do que adequado, é justo. E é preciso recordarmos que a existência da possibilidade de aplicarmos um diferencial de 30% nas taxas de imposto, relativamente às taxas do continente, decorre do facto de termos o direito de pagarmos os mesmos impostos que se pagam no continente. Existem diversos sobrecustos a que os madeirenses estão sujeitos, porque vivemos numa ilha, numa região ultraperiférica… E portanto, decorre da lei esse instrumento para que possamos pagar um nível de impostos adequado ao custo de vida na RAM, que é superior. Não se trata aqui de uma questão ideológica, mas de justiça social. Ainda para mais quando, no momento presente, não estamos a falar de reduções de impostos, no caso das empresas, do IRC, porque isso foi também defendido pelo PS. O Governo Regional dizia que era inexequível, que levaria à insustentabilidade das contas públicas, o mesmo discurso que ouvimos agora, e fizemos esta proposta… recordo, no Orçamento Regional de 2020 era impossível, no Orçamento suplementar para 2020 também era impossível, e tornou-se possível poucas semanas depois, quando foi apresentada a proposta de Orçamento para 2021. Agora, no caso do IRS e do IVA, nós sempre defendemos o desagravamento fiscal. Hoje em dia defendemos a aplicação, na totalidade, do diferencial de 30% pela questão de justiça social, mas também pela situação que vivemos… A conjuntura internacional hoje não é a mesma que vivíamos em 2019. O aumento do custo de vida sobre as famílias da Região foi brutal. Desde o preço dos combustíveis à habitação, tudo isto tem de ser compensado de alguma forma. E a forma mais imediata de compensarmos este aumento do custo de vida é por via de uma redução da tributação. O Governo Regional, e os boletins mensais de execução orçamental demonstram-no, tem tido receitas extraordinárias. Se os preços dos bens e dos serviços aumentam, no caso particular do IVA, que é cobrado sobre esse preço base, a receita do GR também é superior. Nada mais justo do que utilizar essa receita extraordinária para devolver rendimentos aos madeirenses. E por isso é que nós nos batemos tanto por isto. É algo que devia ser uma realidade, a exemplo do que já é nos Açores, que estão sujeitos à mesma Lei de Finanças Regionais, e que desde o ano passado aplicaram estes 30% de diferencial fiscal em todos os impostos sem excepção.

FN – O PS e o PSD continuam a falar duas linguagens diferentes, relativamente a esta matéria. Num artigo publicado no DN-Lisboa em Maio, Pedro Calado, que entretanto transitara da vice-presidência do GR para a presidência da CMF, queixava-se de que o Estado não cumpre o princípio da subsidariedade, e não trata por igual os Açores e a Madeira. Via Lei das Finanças Regionais, apontava, a RAM irá receber este ano menos 15 milhões de euros que os Açores. Também nas transferências para os municípios e juntas de freguesia se verifica esta diferença: os Açores receberam nos últimos 21 anos mais 710 milhões de euros que a Madeira. O GR e o PSD traçam um quadro de injustiça na maneira como a Madeira é tratada relativamente aos Açores, e entendem que era obrigação do Estado, da forma supracitada, ajudar a impulsionar a economia da RAM como o faz no arquipélago vizinho. Como responde a esta perspectiva?

– Acho que é importante separar os dois assuntos. E explico porquê. Quando falamos da aplicação do diferencial fiscal, e por essa questão de justiça, os 30% estão previstos na Lei de Finanças Regionais, no Estatuto Político-Administrativo, por uma razão: devem ser aplicados para defender os madeirenses e isso decorre da nossa autonomia, daquilo que o Governo Regional pode e deve fazer. Não concordo com esta visão de que isso levaria à insustentabilidade das contas públicas, porque naturalmente, se reduzirmos os impostos há uma redução de receita, mas primeiro falamos de receitas que neste momento incluem receitas extraordinárias, como já expliquei anteriormente. Por outro lado, não podemos descurar o facto de que a baixa tributação levará a crescimento económico e provavelmente à cobrança de mais impostos, mesmo com taxas mais baixas. O Governo Regional tem de ser capaz de entender isto, porque defende um sistema fiscal próprio de baixa tributação… Se a defende, deveria aplicá-la nas actuais possibilidades, e em algo que só depende do Governo Regional. Quando o GR levanta a questão da insustentabilidade das contas públicas, julgo que nenhum madeirense consegue perceber este discurso de não reduzir impostos com esta justificação, quando depois vemos projectos a serem anunciados de prioridade extremamente duvidosa, como seja o prologamento do molhe da Pontinha, que custará mais de 100 milhões de euros, um teleférico de 30 milhões de euros no Curral das Freiras ou mesmo a pavimentação da Estrada das Ginjas, com todos os aspectos que podem prejudicar o nosso património natural e inclusive uma eventual certificação da UNESCO. Quando o GR se prepara para alocar quase 200 milhões de euros a este tipo de projectos, os madeirenses não podem aceitar que o governo venha invocar a sustentabilidade das contas públicas… Ainda para mais quando verificamos o percurso ao longo dos últimos anos, assistindo a um Governo Regional que anunciava excedentes orçamentais mas não desagravava os impostos. Há uma mensagem que o GR tenta passar, a de que ao reduzir os impostos perdemos receita. Mas o dinheiro não sai da Madeira. Se um madeirense não o paga nos impostos, fica no seu bolso. Não há é uma transferência desse dinheiro para o GR, e o mesmo fica nos bolsos das famílias que tanto precisam dele para fazer frente ao custo de vida. Por outro lado, e quanto ao papel do Estado e à Lei de Finanças Regionais: todos nós sabemos que temos uma má LFR. O PS foi pioneiro na apresentação de uma proposta de alteração a essa lei, que depois desencadeou todo um processo no âmbito de uma comissão eventual na Assembleia Legislativa da Madeira, que levou a que tivéssemos uma proposta aprovada por unanimidade. Agora, o que não podemos deixar passar sem fazer a crítica que deve ser feita, é que a LFR que temos em vigor actualmente foi aprovada com os votos dos deputados do PSD da Madeira de então, e do deputado do CDS de então na Assembleia da República, que é o actual secretário regional da Economia, Rui Barreto. É uma lei de 2013, de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, prejudicial para a Madeira, e que teve um voto contra do deputado socialista na Assembleia da República, Jacinto Serrão. Essa parte da história não se conta, porque não interessa. Aquilo que hoje o Governo da República faz, em termos de transferências para a RAM, e também para os Açores, decorre única e exclusivamente da aplicação das fórmulas desta lei, que é uma má lei.

FN – Mas existe equidade entre o tratamento dispensado pelo governo central à Madeira e aos Açores?

– O que existe, definido na Lei, com os critérios que existem de PIB, de crescimento, a distância ao continente, o número de ilhas… tudo isso está previsto… mas a verdade é que a Madeira é prejudicada porque recebe menos verbas que os Açores. Mas, por uma lei feita pelo PSD e pelo CDS! E quando se tenta fazer passar a mensagem que é o Governo da República, liderado por António Costa, que está contra a Madeira… O governo central limita-se a aplicar a lei que existe, que não foi feita pelo PS, que aliás, até votou contra, como já disse, via Jacinto Serrão.

FN – O Governo Regional prolonga, com esse discurso, o contencioso das autonomias, a ideia do inimigo externo, é isso?

– Naturalmente que esse contencioso lhe é útil para alimentar essa teoria do inimigo externo, para o Governo Regional desresponsabilizar-se daquilo que corre mal na Região, e levar a que os madeirenses pensem que têm um governo da República que é contra a Madeira e os madeirenses, o que não é o caso.

FN – Muito bem. Mas, noutros casos, como o do financiamento do novo hospital da Madeira, o Governo Regional e o PSD são taxativos ao afirmar que o Governo da República tem automaticamente empatado o processo com burocracias e dificuldades. O discurso do PS vai no sentido oposto, o de que o governo central é que tem viabilizado coisas que os governos social-democratas/centristas nunca viabilizaram para a Madeira. Porém, a verdade é que parece haver da parte do Governo central uma certa retracção, do tipo, ajudamo-los, sim, mas vocês não mandam em nós… Vamos fazê-lo no devido tempo, e como acharmos melhor… Estas acusações de empatar, de prolongar, têm ou não razão de ser? Perguntando de outra maneira, existe centralismo excessivo do Estado português? Dificuldade em reconhecer as regiões autónomas?

– O centralismo existe, é uma realidade que está presente em todos os partidos, sem excepção. Agora, nós não tivemos nenhum governo tão centralista, e que prejudicasse tanto a Madeira e os madeirenses, como o último governo de direita PSD-CDS. E recordo que foi o governo que impôs à Madeira um Plano de Ajustamento Económico e Financeiro brutal, que nos retirou a possibilidade, sequer, de aplicar o diferencial fiscal dos 30%. Que implementou o actual modelo do subsídio social de mobilidade que tanto é criticado… foi um modelo criado e desenvolvido por Miguel Albuquerque com Pedro Passos Coelho. Foi um governo que nunca aprovou um Projecto de Interesse Comum com comparticipação a 50 por cento, como é o caso do Hospital… E é preciso dizer que foi este governo de António Costa que aprovou este apoio à construção do novo Hospital da Madeira. A questão dos 50% de apoio está absolutamente garantida. Foi questionado se era só a construção do Hospital ou se incluía os equipamentos; foi esclarecido que incluía os equipamentos. Foi questionado se incluía ou não o IVA, e esclarecido que incluía; mais recentemente, e apesar de o PSD já ter voltado a essa retórica, foi feito um pedido de esclarecimento em sede da Assembleia da República, em Dezembro do ano passado, sobre todas estas questões, e foi novamente esclarecido, e inclusive, as facturas que têm sido apresentadas pelo Governo Regional da despesa já incorrida para a construção do novo Hospital, têm sido pagas a 50%. Só com objectivos de alimentar esse inimigo externo, de desviar dos verdadeiros problemas da Saúde na RAM e atribuir responsabilidades a terceiros é que podemos ver o Governo Regional a fazer esse discurso. Sobre a Saúde, é importante recordarmos as promessas de Miguel Albuquerque em 2015 (nem falo de 2019). Referindo-se às listas de espera, prometeu acabar com as mesmas numa legislatura, e tínhamos cerca de 60 mil actos médicos em lista de espera em 2015… Hoje em dia, dados de 2021, temos 118 mil actos médicos em espera, ou seja, o dobro…

FN – E não é possível às pessoas saberem que lugar ocupam na lista…

– E há uma falta de transparência gritante, não só na divulgação dos números, como na própria divulgação, a cada indivíduo, para poder ter uma expectativa de quando poderá ser atendido. Por isso é que o PS tem apresentado várias vezes propostas no sentido de serem definidos tempos máximos de resposta garantidos, a exemplo do que já existe no restante território nacional. E isso introduziria transparência. Naturalmente que um Governo Regional que promete acabar com as listas de espera em quatro anos, não o consegue fazer em sete e não o fará até às eleições regionais de 2023, e inclusive, agravou o problema para o dobro… é claro que quer criar cortinas de fumo e distracções para não ser responsabilizado pelo actual estado da Saúde. A construção do novo Hospital [e as eventuais dificuldades invocadas] é uma não questão. Agora, as listas de espera são assuntos demasiado importantes para serem ignorados. Fazemos o nosso papel de escrutínio, de denúncia do que está mal, e apresentamos soluções para resolver estes problemas, fundamentais para todos os madeirenses.