Uma interminável tragédia

Quando na sequência da invasão da Ucrânia por tropas russas, vários milhões de ucranianos
foram forçados a sair do país e a refugiarem-se nos mais diversos países europeus, que de um
modo geral os têm recebido de braços abertos, solidarizando-se com a tragédia que sobre os
mesmos se abateu, os cidadãos mais optimistas, porventura imaginaram que, de então em
diante, o designado mundo ocidental passaria a comportar-se de modo idêntico com todos os
outros imigrantes que fugindo a guerras, a conflitos, à fome, a uma vida sem horizontes,
procuram refúgio na Europa ou nos Estados Unidos da América.
Ora, como os factos vêm evidenciando, quem assim pensou, iludiu-se por completo.
Recentemente, a 24 de Junho, na fronteira entre Marrocos e Melilla (território espanhol), face
ao avanço de cerca de 2 mil pessoas que tentavam entrar em Espanha, 1.500 agentes
marroquinos dispararam uma infinidade de granadas de fumo contra a multidão. Como
descreveu Daniel Oliveira no “Expresso”, “no meio do caos instalado, do pânico, da violência e
do desespero para entrar, 33 seres humanos agonizaram até à morte, asfixiados ou esmagados
junto à vala ou depois de caírem da cerca que a limita na mencionada fronteira. Migrantes
feridos não receberam auxílio das autoridades espanholas e foram agredidos por polícias
marroquinos que, entrando em território espanhol, os fizeram regressar a Marrocos”. Os
mortos, por sua vez, foram enterrados sem autópsias, sem identificação, sem informar as
famílias, impossibilitando uma investigação séria sobre o que se passou. Indiferente a esta
crueldade e desumanidade, Pedro Sánchez, o chefe do governo espanhol, teve o desplante de
agradecer a “extraordinária cooperação” do Reino de Marrocos e o comportamento da sua
polícia.
Três dias depois, a 27 de Junho último, nos arredores de San Antonio, no Texas, os cadáveres
de 51 pessoas (morreram asfixiados e de desidratação) foram encontrados num camião
abandonado, tendo as autoridades locais dito tratar-se de migrantes que podem ter sido
vítimas de uma rede de tráfico de seres humanos – outras 16 pessoas, incluindo 4 crianças,
foram hospitalizadas, apresentando sinais de terem sofrido insolações (San Antonio é um local
de passagem comum na rota de migração irregular para os EUA proveniente da América
Central e as redes de tráfico de seres humanos usam frequentemente camiões para esconder
os migrantes).
Em 2021 foram detidas 1,73 milhões de pessoas que tentavam chegar aos EUA e este ano esse
número deverá ser superado, segundo a BBC e também no ano passado morreram 650
migrantes na fronteira entre os EUA e o México, um recorde desde que em 2014 a
Organização Internacional para as Migrações começou a recolher estes dados.
Já este mês, no passado dia 7, 22 malianos morreram, entre eles 3 crianças, ao largo da costa
líbia. Viajavam integrados num grupo de 83 migrantes que se fez ao mar num barco deixado à
deriva.
Com a queda de Khadafi em 2011, a Líbia passou a ser uma rota privilegiada para as
organizações de tráfico de migrantes.
Desde 2014, chegaram à Europa, vítimas de uma Primavera Árabe fracassada, de guerras e de
crises ambientais, quase 2 milhões de refugiados. O pico foi em 2015, com mais de um milhão de chegadas. De 2014 a 2019 morreram ou desapareceram quase 20 mil refugiados a
atravessar o Mediterrâneo. Ao mesmo tempo, a Europa substituiu o programa de resgate que
vigorou durante um ano, entre 2013 e 2014, por um programa de patrulhamento e entregou o
problema ao Estado falhado da Líbia. E, como se não bastasse, governos europeus
criminalizaram as Organização Não Governamentais que os procuram trazer para terra.
Em 2016, a União Europeia celebrou com a Turquia um acordo para que Ancara, em troca de
avultados fundos, sirva de tampão aos milhões de refugiados no seu território e regiões
vizinhas. O mesmo sucedeu com Marrocos que recebe uma generosa assistência financeira
para assegurar o fecho das fronteiras. Mas, como já se verificou em outras ocasiões com a
Turquia, acordos deste tipo podem tornar-se uma perigosa arma de pressão política.
Ao longo dos anos, nesta mesma Europa que acolheu de braços abertos os ucranianos, em
Malta, por exemplo, recusou-se a entrada de um navio humanitário com migrantes; Itália não
deu permissão para que barcos com migrantes atraquem; para não falar das frequentes
tragédias de naufrágios de navios no mar Mediterrâneo – a 22 de Junho de 2018, o jornal
italiano “IL Manifesto” publicou uma lista com os nomes dos 34.361 migrantes até então
mortos no Mediterrâneo. Facto que evidencia como o Mediterrâneo se transformou num
autêntico cemitério.
Para responder ao fluxo de migrantes que se lança ao Canal da Mancha para tentar a sua
sorte, o governo britânico pretende encaminhá-los para o Ruanda, um pequeno país com a
maior densidade populacional de África, onde há relatos de violação de direitos humanos.
Segundo dados do Ministério do Interior britânico, quase 30 mil pessoas chegaram ao Reino
unido em pequenas embarcações em 2021. Para justificar a sua decisão de enviar os migrantes
que chegam de forma irregular ao país para o Ruanda, o executivo britânico invocou avultados
gastos no sistema de asilo que se revelaram não credíveis, ao ponto de o próprio príncipe
Carlos, herdeiro do trono, ter considerado em privado, segundo o The Times, a decisão como
“terrível”.
O brado internacional em nada mudou os planos britânicos, tendo o Guardian revelado que o
governo já está a planear um 2º voo de refugiados, a realizar ainda antes de os tribunais
decidirem sobre o processo que tenta travar a transferência dos migrantes, requerido por um
grupo de advogados e que só começa a ser apreciado a 19 de julho.
Nestes últimos dias, soube-se, por outro lado, que, entre 28 de Fevereiro e 22 de Junho
último, a Grécia e a Frontex (agência da UE que desenvolve a gestão das fronteiras)
abandonaram no Mar Egeu 27 mil pessoas – migrantes oriundos de África e do Médio Oriente
– que tentavam entrar no espaço europeu e encaminharam-nas para águas turcas. Registe-se
ainda que, no passado dia 7 de Julho corrente, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
condenou a Grécia pelo naufrágio no Mar Egeu, verificado em Janeiro de 2014, de um barco
com 27 migrantes, 11 dos quais morreram, por não ter aberto uma investigação e por ter dado
um tratamento degradante aos sobreviventes, exigindo-lhe o pagamento de uma
indemnização de 330 mil euros aos 16 sobreviventes (13 afegãos, 2 sírios e um palestiniano) –
uma decisão considerada histórica.
Sinal de igual desumanidade prepara-se para ser dado pela Suécia e pela Finlândia que,
acedendo às exigências colocadas pela Turquia para possibilitar a sua adesão à Nato, vão
deixar de acolher militantes curdos e entregá-los ao autocrata Erdogan – um abandono a que o
próprio Ocidente os já havia votado, depois de os ter usado na guerra contra o estado
islâmico.

Comentando esta flagrante discricionariedade, o jornalista Daniel Oliveira escreveu na edição
diária do “Expresso” a 30 de Junho último: “Não venham dizer que é porque a Ucrânia está
mais próxima de nós. Liviv fica a 3.600 quilómetros de Lisboa. Melilla a 940. A proximidade é
outra: os ucranianos são brancos, loiros, nutridos, cristãos e parecem ser como nós (ou como
nós gostaríamos de ser). Em princípio, devem sentir dor como nós, ao contrário dos sub-
humanos subsarianos. Podem transformar esta diferença perante o sofrimento de uns e de
outros em empatia ou proximidade. Tem o mesmo nome de sempre: racismo”. Ou, por outras
palavras, “se existem «valores europeus» são para consumo da casa”.

 

* por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

Post-Scriptum:

1) Vitupério: O titular regional da saúde farta-se de tecer loas ao investimento
no sector, desvalorizando os problemas e as carências. No meio de tanta maravilha, como
explicar o descalabro nas listas de espera que de ano para ano se agrava?!

2) Quiproquó?: A estória à volta dos discursos no Chão da Lagoa não deixa de ser esquisita por revelar que, pelos vistos, a organização demorou a aperceber-se que a mudança autárquica no Funchal ocorrera há largos meses. Às tantas, o que houve foi incómodo em dividir o protagonismo do palco.

3) Comemorações: A controvérsia à volta do 10 de Junho foi uma questiúncula de protocolo usada como pretexto para criticar o Presidente da República por parte de quem
confessa ter ambição de fazer carreira política a nível nacional?

4) Disputa: Afinal, há mais quem queira reclamar a paternidade da denominada “Madeira Nova”, fazendo concorrência à criatura que se auto-intitulava de “único importante”. Agora, é o 1º vice-presidente a escrever que também “obrou”. Querem ver que vai haver lugar a disputa de medalhas e de estátuas? O vírus do narcisismo é altamente corrosivo…

5) O seu a seu dono: Ao contrário do que uma ex-parlamentar regional escreveu no “JM” a “Carta a um Governador” não foi escrita pelo dr. Fernando Rebelo que, aliás, nem a subscreveu – a autoria pertence ao jornalista José Manuel Barroso e ao dr. António Loja.