Dor é vírgula

 

(… à morte dos amigos)

 

Passam as águas nas correntes da terra e a cada gota que se esvai corresponde algures uma lágrima que a edifica. Somos todos nós, os ambulantes, que dum lado a outro do planeta corremos, a armar a vida, a cumular os dias de atavios, a erguer emoções como quem procura agitar a alma para que ela encontre o seu álveo perfeito, para que ela se ajuste à vontade de sentir e de amar, como arma de defesa contra o desamparo de ser criatura terrena, num processo insondável que a fez surgir sem conhecer o seu destino. Porquê e para quê, andamos nós  por aqui, observadores atónitos de tanto desmoronar, sofredores de calamidades, de inesperadas hecatombes, de implacáveis devastações; portadores de desejos, de sonhos inacabados, de vontades inconformadas, num anseio permanente de encontrar o lugar certo de existir sem dor.

À medida em que se amadurece e se atinge o auge no processo de Cronos, não será adequado padecer de crises existenciais. Todavia, a inquietação adormecida pela experiência da vida, acaba por reanimar-se perante os grandes abalos do planeta que nos arrasta para os seus desígnios desconhecidos e o fenómeno devastador da morte atesta de modo incontornável as nossas fragilidades, reforça o medo e acentua a impotência, perante  as competências do Universo e a inefabilidade dos seus desígnios.

A morte é um tema de instigação para os filósofos que a consideram a «musa da filosofia», sendo a filosofia «uma preparação para a morte». Sem ela, afirmava Sócrates, não lhe teria sido possível filosofar. Por tradição grega, sem a morte e as tragédias humanas, não teria havido literatura. Mas esta certeza assustadora de que um dia deixaremos de existir, invade-nos de modo incisivo quando começamos a perder, um a um, aqueles que amamos, os  amigos próximos, e, à nossa volta começa a formar-se o vazio da ausência. O mundo contrai-se, solta a memória, comprime a noção do tempo e a vida transforma-se num tópico doloroso, num momento fugaz, num indício de abandono.

Ultimamente têm sido muitos os amigos que vão desaparecendo, pronunciar-lhes os nomes  conduz a uma  realidade que já não temos, e custa-nos  saber que não podemos apreendê-los pelos sentidos, não podemos ouvi-los, não vemos o seu rosto, não sentimos o seu abraço. Só poderemos evoca-los numa aura de distanciamento que  cerceia por completo a ilusão de que iremos encontra-los qualquer dia numa rua da cidade, ou à mesa dum eventual convívio.

Deste modo restamos nós sob o silêncio das memórias indizíveis, e apelamos às resistências pressentidas  no rumor das nossas veias que nos faz sentir ainda vivos. Em demanda de cada hora agarramos a  força da corrente que nos conduz, gota a gota, para o grande e inevitável derradeiro oceano. Convém saber que a liberdade da água tem o seu limite condicionado à gravidade do planeta mas uma minúscula  gota, pode, por vezes escolher o seu álveo nessa  pequena glândula alojada no canto dos nossos olhos. A lágrima  manifesta-se e fala pelo coração  porque «o coração não é gaveta».

Cito o texto  de Ruth Borges, poetisa brasileira pertencente a uma equipa que  criou uma rede educativa de nome Raiz.  O rumor das nossas veias dá a perceber que há muitas formas de deixar manifestar-se o coração:

« Engole o choro. Engole o sapo. Cala a boca. Cala o peito. Mas o corpo fala, e como fala !… Fala a ponta dos dedos batendo na mesa…falam os pés inquietos na cama…fala a dor de cabeça. Fala a gastrite, o refluxo, a ansiedade. Fala o nó na garganta, atravessado…Fala a angústia, fala a ruga na testa, fala a insónia, o sono excessivo…

Mas …dor não é para sentir sempre. Dor é vírgula. Então escreve uma carta, faz um poema, um livro. Canta, pega nas sapatilhas, sapateia. Faz um quadro, disfarça-te de artista. Faz corrida no parque, passeia o cão. Fala com Deus, fala com o teu analista, com o Universo. Conversa sozinho, solta um grito para o céu, mas não te cales.»

É por isso que escrevo. Liberto a palavra. É por isso que a partida dos amigos correspondendo a uma evasão, me faz lembrar que o  «coração não é gaveta» e que a liberdade da lágrima  ao desertar da corrente, cria uma pausa. É a virgula necessária no processo de libertação que concerne à morte, como fuga ao sofrimento.

Dor é virgula. Que isto nos alivie.