Sim, Dra Francisca Ramos, tudo para Ele…

Num abrir e fechar de olhos, recebi a notícia inesperada: a Professora Francisca Ramos partira para a Glória Eterna. Dias antes, quando tentávamos correr contra o tempo para travar as malhas implacáveis da doença, lembro-me do seu sorriso de tranquilidade: “Oh Rosário, eu estou nas mãos do Senhor…”

O abalo da sua partida foi de tal ordem que me vi incapaz de escrever uma linha, já lá vai um mês. Talvez porque acho que esta Senhora Professora, com 86 anos de idade, será sempre eterna.

Queria abrir-lhe o meu coração e dizer-lhe, face a face: desculpe, não pode ser assim, partir dormindo, como quem diz vou ali e já volto! Saiba, Dra Francisca, que é difícil perceber que já não habita este mundo e que está apenas do outro lado, naquela eternidade de que tanto nos falou com o zelo do seu Senhor.

Conheci esta mulher esguia, assertiva, culta e zelosa dos valores, quando estudei Latim no Liceu. Toda ela impunha modos e um amor incondicional à Língua Portuguesa e ao seu berço, o Latim. Por ela e pela formação de tantas gerações, desgastava-se e enfrentava amuos e ranger de dentes, quando nos desinstalava do ócio ou de brandas dedicações à causa da sabedoria. Não agradava a todos. Soube-o sempre. Mas, qual soldado em combate pela nobreza do saber e dos Valores, impunha-se pelo respeito e pelo serviço à sabedoria. Ainda hoje, sinto o seu olhar atento ao uso da palavra certa, a correção oportuna e a adenda útil em nome da cultura. Aposentou-se do ensino, com aquela serenidade e sábia majestade, recitando no almoço de despedida com os colegas de grupo, José Régio, a “Canção da Primavera”, “Eu, dar flor, já não dou. Mas vós, ó flores,/ Pois que Maio chegou,/ Revesti-o de clâmides de cores! /Que eu, dar flor, já não dou.”

Uns anos depois da aposentação, cruzei-me com a Dra Francisca. Antes, dera pela sua falta, ao que me replicaram que colaborava ativamente com a Igreja… Não compreendi o alcance desse novo e antigo amor por Jesus, até ao momento em que a reencontrei no seu Liceu com um convite a quem tivesse o coração aberto. Estou a vê-la, de sorriso aberto, voz suave e firme, com pressa de me fazer encontrar com Jesus: “Venha, Rosário, para as Oficinas de Oração e Vida!” Pasmei com o repto, não tinha, então, sensibilidade para escutar Deus, mas ela insistiu do alto da sua “auctoritas”, que guardei o convite, apenas por indelével estima a esta mulher marcante na minha vida de aluna. Os caminhos do Senhor são insondáveis e acabei mesmo por participar nas Oficinas de Oração e Vida, descobrindo nesta mulher uma mestra espiritual, uma serva apaixonada e incansável de Jesus, acompanhada por outras guias que acabariam por operar uma viragem total na minha vida espiritual.

Eu sei que a Dra Francisca descansa no merecido Céu, após uma vida inteiramente dedicada ao ensino e ao Amor a Deus. Poderíamos dizer as coisas banais da partida de um ente querido, mas é exercício que a minha Professora dispensaria porque abominava a adulação e muito mais os encómios postiços dos novos tempos que lhe suscitavam confessada “náusea”. Queria gente de têmpera ao serviço do ensino, queria reverência pelo berço da cultura, a cultura helénica que testemunhou com tanto ardor… e no outono da vida, queria, muito, que descobríssemos e adorássemos o maior dos amores, ELE, o pobre de Nazaré… Estou a vê-la a erguer os olhos para o infinito, a sorrir ante a grandeza de quem não se vê mas que é o caminho, a verdade e a vida, e por isso, tudo para Ele… dizia até à exaustão, com aquela frescura e jovialidade, como se tivesse sempre 20 anos.

Eis que Jesus chamou a si esta intrépida serva. Na alegria da sua vida e pedagogia, Jesus cala. Na dor do luto, Jesus cala. Os dias que se sucedem à partida passam, silenciosos e sem o reencontro presencial com a mestra. E Jesus cala… Olho para o céu, e ouço as palavras de São João da Cruz, que a minha querida Professora, inspirada por Frei Ignacio Larrañaga, o saudoso mentor das Oficinas de Oração e Vida, tão bem recitava, e só aí a reencontro e permaneço em oração de quietude. Mas apenas com  “A música calada,! A solidão sonora,/A ceia que recreia e que enamora.”