Certificação de aeronaves – o pós-737MAX

O malogrado Boeing 737MAX regressou aos céus no primeiro trimestre de 2021, após quase dois anos de calvário na recertificação, sem mácula. Fruto de dois acidentes, na Indonésia e Etiópia, a FAA retirou-lhe o certificado de tipo, e efetivamente amarrou ao solo várias centenas de aeronaves novinhas. A FAA é o órgão regulador norte-americano que atribui a licença para que um determinado tipo de aeronave indígena esteja conforme as regras de segurança e possa ser colocada ao serviço do transporte comercial, e reconhece que falhou no MAX. Falhou admitidamente, na supervisão, escrutínio e laxismo intelectual na aplicação de regras com base em retroativos. Os dois anos de grounding não tiveram tanto a ver com a dificuldade técnica em resolver o problema com o sistema de segurança de voo MCAS, mal desenhado, mal integrado e mal divulgado, mas sim com o repensar do processo de certificação. O primeiro Boeing 737 saiu em 1967 e o 737MAX é uma evolução iterativa do modelo bebé 737-100, que já de si aproveitava elementos de outras aeronaves da Boeing.

Boeing 737-100 da Lufthansa em 1973 (Crédito: Icarus – Suíça)

Por exemplo, o nariz e a forma da secção da fuselagem derivam do Boeing 707, uma década mais ancião. Idem para o Boeing 727. Claro que ninguém duvida de que por dentro do casulo, visualmente semelhante, pouco há de comum ao fim de meio século. Cockpit mais ergonómico, sistemas mais fiáveis e automatizados, motores mais eficientes, métodos de fabrico mais avançados, e muitas falhas de segurança eliminadas ao fim de milhares de aeronaves fabricadas e milhões de horas voadas.

Boeing 737MAX8 da TUI na Madeira em 2021 (Crédito: José L. S. Freitas)

O drástico é que o avião foi sem certificado ao longo dos tempos com base na validação das mudanças. Ou seja, aquilo que já funcionava e estava certificado, permanecia certificado como tal, e os novos testes incidiam sobre as novidades e a aeronave no todo. Acontece que as regras também mudam e se fosse haver uma certificação de raiz de todos os componentes individualmente, muita coisa nunca passaria. Certo é que a fiabilidade estava já comprovada e na realidade a segurança empírica até se pode considerar mais realista que a atestada por um papel. Mas é justamente aí que o 737MAX pecou. A aeronave no seu todo estava certificada por um papel de “secretaria”. E esse papel, rubricado pela FAA, não servia. A Boeing apresentou relatórios de resultados de testes rasurados, e a FAA limitou-se a assinar por baixo. Neste caso a corda tinha sido esticada demais. À medida que se averiguaram as causas dos dois acidentes foi-se revelando como o processo apresentava falhas no seu fundamento. Imagine-se o que é o modelo novo de um carro de ser homologado pelas regras atuais (emissões, segurança, etc.) e competir no mercado ombro-com-ombro com o Renault 4 “kitado”. Por exemplo, existem voos em multimotores a hélice do tempo da Segunda Guerra Mundial a voar, em passeios históricos e alguns a transportar carga (DC-3). Estes não foram certificados para sobreviver à falha de um motor à descolagem, ao contrário de qualquer aeronave corrente da Boeing, Airbus, ATR, etc. E nem o conseguem, como já se viu.

Há quem ache que o grounding do 737MAX foi uma consequência do mediatismo, divulgação nas redes sociais, e que noutra altura a opinião pública não teria tido tanto peso. Nada mais errado. Nas últimas décadas do passado milénio a segurança aérea era tema muito mais quente que hoje. A confiança do público na segurança da aviação era muito menor, e em muitos casos o medo era justificado por comparação à menor sofisticação de sistemas. Um acidente aéreo era das notícias de maior destaque possível nos media, ofuscando por completo reportagens sobre galinhas de três patas, fait divers dos socialites, discursos lexicalmente pobres de dirigentes desportivos,  e comentários a acontecimentos destacados pela sua futilidade ocorridos em reality shows, na sua décima edição. O grounding do DC-10 é um bom exemplo, tal como o DH Comet e o Lockheed Electra. O aeroporto da Madeira é o mais visitado por 737MAX em Portugal, em Lisboa raramente aparecem. Todas as semanas recebemos MAX da Enter Air, de várias do Grupo TUI e da SmartWings.

A FAA mudou a sua maneira de agir, e o Boeing 777-9 foi o primeiro a “comer por tabela”. Trata-se de uma evolução do mais que seguríssimo “triple-seven” que voou pela primeira vez em 1994. Foi desenhado de raiz pela Boeing, já com uso de computadores. Difere o 777-9 dos anteriores, na fuselagem mais longa, cabine mais larga (interior), asa nova com pontas dobráveis (como nos porta aviões), e alguns sistemas mais evoluídos. Nada verdadeiramente radical, comparando-se por exemplo com a transição do Boeing 737-200 para o -300. O olho não treinado não seria capaz de distinguir facilmente um 777-300 de um 777-9.

O programa foi lançado em 2013 e primeiro 777-9 voou em janeiro de 2020. Porém, em junho deste ano a FAA recusou que se iniciassem os testes de certificação indicando que o construtor deve primeiro resolver uma série de problemas, em especial no que concerne a um incidente em voo no final do ano passado. A entrada em serviço operacional poderá não ocorrer antes de 2024, onze anos após a primeira encomenda e quatro anos após a data prometida para entrega do primeiro exemplar.  E eu não tenho dúvida que esta será uma aeronave exemplar.