Geopolítica “do número”: o argumento demográfico e a democracia

“War is just demographics in a hurry.”

― Gary Brecher, The War Nerd

Âmbito

Os parâmetros relativos às dinâmicas da população/demografia são entendidos como cada vez mais determinantes de um ponto de vista geopolítico e, frequentemente, referidos como a “geopolítica do número”. A um número mais robusto corresponde, assim, um equivalente, em poder, no xadrez mundial, determinando o modo como um Estado populoso adquire, por essa via, um estatuto de influência que pode exprimir-se em diversas dimensões.

Um alerta subliminar

Contexto – quadro de claro retrocesso demográfico, na Europa, continente ao qual corresponde um decrescente número de filhos, por casal, à medida que o progresso e a qualidade de vida se instalam.

Episódio – em 2015, na vigência de mais uma crise migratória, a Chanceler alemã Angela Merkel afirmou que a Alemanha contava receber, nesse ano, 800 mil refugiados, na expectativa de que os mesmos pudessem contribuir para alavancar a taxa de natalidade, na Alemanha. No ano seguinte, aquando de uma visita a um jardim de infância, considerava muito encorajador o aumento da taxa de fecundidade, o maior nos últimos 33 anos (até então). Manteve sempre um rigoroso repúdio relativamente à imigração ilegal e reforçou o apoio do Estado aos cuidados e assistência à infância. De acordo com o https://countrymeters.info/pt/Germany, a Alemanha tem, hoje, uma população de perto de 84 milhões de pessoas, oito vezes mais do que a população portuguesa, sendo que o equilíbrio entre o número de homens e de mulheres é notório.

Parâmetros

De acordo com o sociólogo Vadim Bezverbny e de forma muito sintética, podemos elencar os seguintes parâmetros que consubstanciam os factores demográficos que definem e determinam o estatuto geopolítico de um Estado:

  1. a) o número total de cidadãos; b) a taxa de natalidade; c) a taxa de mortalidade; d) a qualidade de vida da população (educação, cuidados de saúde, habilitações académicas e qualificação profissional, entre outros); e) a diversidade étnica e religiosa; f) a percentagem equitativa entre o número de homens e de mulheres; g) a manutenção de estruturas familiares estáveis; h) a densidade populacional; i) a tipologia de descolamento populacional e j) os processos migratórios.

Esta proposta de Bezverbny, polémica em algumas alíneas, revela as dimensões pelas quais um Estado pode prosperar ou colapsar, sendo que o modo como o mundo actualmente se apresenta fornece exemplos elucidativos: o domínio da China e da Índia, par conhecido como “Chindia” e que tem sido, aliás, alvo preferencial de análises políticas sustentadas no que se designa como “teoria da conspiração” relativamente à pandemia Covid19. Outra matéria.

Migrações, utopias, distopias e demodistopias

A História da Europa é um registo permanente de fenómenos migratórios, sendo que alguns deixaram cicatrizes profundas. Para este facto contribuíram fomes, epidemias e guerras, fontes principais das deslocações dos povos, a par de outras, menos frequentes então, mas que construíram sempre o material de que os sonhos de uma vida e de um mundo melhor são feitos. Como é evidente, as dinâmicas, muitas vezes conflituais e opressivas, da responsabilidade das religiões, sobretudo as abraâmicas, determinaram movimentos demográficos significativos que assinalaram, ao longo da História, as correspondentes dinâmicas de poder. A relação entre demografia e poder não é, por isso, uma questão nova. É novo apenas o tempo que estamos a viver, por ser o nosso e por envolver um mundo globalizado e tecnologizado.

À ideia de construção de novos e melhores mundos, descrita nas utopias dos tempos da primeira globalização, sucedeu-se o tempo das distopias que caracterizou o despertar da industrialização. As narrativas distópicas descreviam mundos demograficamente alterados, caracterizados, frequentemente, por um envelhecimento massivo e precoce da população, por migrações em massa e uma mortandade excessiva, epidemias, a par de possíveis tecnologias reprodutivas. As demodistopias surgem sobretudo no século XX e inícios do século XXI  e exibem os campos semânticos do medo, sobretudo ligado ao excesso populacional, no planeta, uma espécie de novo milenarismo, ou “colapsologia” encenando o fim próximo das possibilidades do planeta, (Vide o meu artigo, neste jornal https://funchalnoticias.net/2020/07/13/milenarismo-teorias-do-desmoronamento-ou-a-relevancia-da-colapsologia-em-tempos-de-sars-cov-2/ ). As demodistopias visam uma diabolização do futuro cujos responsáveis designados são os próprios cidadãos para que um sentimento de culpa individual se instale e aniquile qualquer ideia de esperança num mundo diferente e melhor. É por isso mesmo que esta espécie de distopia tem sido acolhida nos países democráticos de tipo ocidental onde essa ideia acompanha as tendências de baixa de natalidade e de crescente afirmação de valores individuais em detrimento dos valores colectivos. Em contraponto, e generalizando, nos países cujos regimes políticos se situam no plano do totalitarismo ou da autocracia, são elevadas as taxas de natalidade e o aumento da população continua a ser o garante do poder que essas Nações exercem no quadro geopolítico global.

Então o que é que a lei do número tem a ver com a Democracia?

A “lei do número” tem carácter nomotético (de lei) e permite, por isso mesmo, projectar algumas reflexões de natureza geopolítica relacionadas com a demografia. Este facto, que historicamente, por exemplo, sobretudo na Europa, correspondeu a uma preponderância social, política, cultural, económica e diplomática da França, foi substituído por uma prevalência, do mesmo tipo, proporcionada pelo “boom” demográfico e expansivo dos Estados Unidos ao qual corresponde, actualmente, a posição dominante do inglês enquanto língua franca, sendo que, e cada vez mais, é suplantada, em muitas geografias por outras línguas como o mandarim. Segundo dados da ONU, os países mais populosos do mundo são a China e a Índia, como referimos, seguidos dos Estados Unidos, da Indonésia, Brasil, Paquistão e Nigéria. Ainda segundo a mesma fonte, em 2027, a Índia deverá ultrapassar a China e essa dinâmica pode verificar-se, igualmente, entre outros países.  No que respeita à União Europeia, o eterno candidato Turquia, com cerca de 83 milhões de habitantes, próximo, portanto do número da Alemanha, mudaria, de forma radical, o equilíbrio de forças no seio da União, não só pelo “lobby” populacional, mas por via da religião dominante e do regime político, por exemplo. A paisagem eleitoral dos Estados Unidos está, gradualmente, a ser alterada, igualmente, através das chamadas “dinâmicas de cor”.

A “lei do número” supõe um poder de que os Estados dispõem e que podem determinar a alteração dos regimes em direcção a autocracias ou à manutenção dos totalitarismos. Portugal, a viver uma crise demográfica desde há algum tempo, não tem voz internacional nem se afirma como nação euro-atlântica, não só pela ausência de capacidade ou habilidade política da sua classe dominante, mas também porque dez milhões de pessoas não representam, hoje, qualquer expressão geopolítica. A ideia de uma CPLP forte, tal como a OIF ou a “Commonwealth”, assumiria não só uma garantia de voz internacional, como do correspondente poder. O estado dos Estados oriundos da descolonização portuguesa é disso o mais lamentável exemplo.

As democracias do tipo ocidental vivem momentos de fragilidade cuja origem se situa, igualmente, no enfraquecimento provocado pela crise demográfica. A recente Cimeira dos G7, apesar de todas as críticas que possam ser endereçadas, trouxe os Estados Unidos de volta à Europa. Essa ligação é vital para a sobrevivência do modo de vida ocidental, tal como o construímos, em Liberdade e em Democracia. A “lei do número” conferida pelos EUA é um dos nossos mais preciosos certificados de seguro, em pelo século XXI. Hostilizá-la é um erro profundo. Sem retorno.

(Nota de rodapé:

não é viável, num texto desta natureza, entre a tentação do ensaio e o formato que, generosamente, o acolhe, proceder a um aprofundamento dos temas suscitados. Ficam as centelhas, as pistas, os silêncios que também têm valor discursivo).