Cubanos

Estávamos em mil novecentos e noventa e oito. O último ano da minha adolescência. A Sara tinha vindo passar férias por quinze dias. E catorze noites bem vividas. Como se vivem as noites da adolescência.

Numa dessas noites, a Xana apresentou-a a uns amigos e acrescentou, A Sara é cubana. A estupefação que lhe ficou estampada na cara. Impagável. Confusa, esclareceu rapidamente, Não, eu não sou de Cuba. Sou de Lisboa. Com aquele ar de quem não percebe como se confunde a pronúncia lisboeta com espanhol.

A Sara foi a primeira pessoa com quem falei na faculdade e quis o destino que nos tornássemos amigas até hoje. Eu sempre tive olho para a coisa. Fiz boas, tão boas, amizades enquanto estudava. Com algarvios, então, entendi-me às mil maravilhas. Deve ter a ver com a proximidade do mar. Ou por gostarmos de festas. Talvez por causa disso.

Mas rica, muito mais rica por ter experienciado através de outros saberes, por ter visto Portugal pelos olhos de outras latitudes e por ter ouvido com a melodia de outros sotaques.

Nunca percebi o estudante que sai da Madeira com o seu grupo de amigos e volta, anos depois, com o mesmo grupo de amigos. Mais ninguém. Ou um grupo acrescentado com outros madeirenses que conheceu numa qualquer Casa da Madeira.

Nada contra, mas o mundo é grande demais para isso.

E há tantos cubanos de que gosto. Muito.

E há tantos outros de que não gosto. Nada.

Não gosto dos que me perguntam quando vou a Portugal. Que só se lembram que afinal somos Portugal porque está Sol ou porque os números Covid estão mais baixos.

Não gosto dos que me pedem para dizer kilhómetro ou filhme, como se fosse um papagaio amestrado para gáudio das massas.

Não gosto dos taxistas que, percebendo que sou da Madeira, vão a Sintra para chegar à Baixa.

Não gosto dos que fazem pagar ou adiantar, numa passagem aérea, o mesmo que gastaríamos para ir a Nova Iorque.

Gosto dos que me chamam carinhosamente Felhipa. Não porque é giro gozar com isso, mas porque faz parte da minha identidade.

Gosto dos que promovem a Madeira genuinamente, dos que adoram cá vir, dos que vibram com uma espetada e milho frito, com o nosso mar, com as nossas cores. Gosto dos que sonham vir à Festa da Flor ou ao fim do ano que veem na televisão.

Gosto dos que entendem que temos uma realidade regional diferente. Que a procuram conhecer e respeitar. Que não dão chapéus aos deputados regionais, representantes do povo madeirense, para não se queimarem enquanto assistem às comemorações do Dia de Portugal. Postos num canto.

Gosto dos que tornaram o bolo do caco o pão de excelência de todas as hamburguerias gourmet de Norte a Sul de Portugal.

Estava com a Sara, com os nossos maridos e filhos a apreciar um belo arroz de lapas e um filete de espada com banana no Solmar, depois de um revigorante mergulho na praia mais bonita da ilha. Ao menos foi assim que lhes vendi a praia do Seixal. Eu vendo muito bem a nossa ilha. Não é preciso muito. Ela praticamente fala por si.

Discutíamos se o filete de espada com banana é um prato verdadeiramente típico madeirense. Eu que não. O meu marido que sim.

A cerveja era a de puro malte da Coral. Outra que não é preciso vender. Basta um gole. A conversa animada. Barulhenta. As miúdas, as minhas e as dela, entendiam-se às mil maravilhas, como se fossem mesmo como se tratam, primas.

Lembrámo-nos da história da cubana de mil novecentos e noventa e oito. Rimos muito. Rimos sempre. Expliquei ao mais velho, no último ano da sua adolescência, o porquê de os chamarmos cubanos. Para ele poder perceber a piada. E perceber que não é pejorativo. Só um resquício da nossa História recente.

E nós contávamos coisas de cá e eles coisas de lá. Com curiosidade. Com respeito. Com interesse e amizade.

Atrás de nós estava uma mesa de continentais. Mais barulhentos que nós. Nada que me incomode. O que diziam e como diziam, sim, poderia incomodar.

A sobranceria, a superioridade armada, a falta de educação, a exigência. Como se estivessem na colónia. Isso poderia incomodar. O gozo, em alto e bom som, do sotaque da senhora do restaurante que os aturava. Isso poderia incomodar.

Talvez por não ser nada de novo, nem me chegou a incomodar. Infelizmente.

Depois olhei para os meus amigos. Olhavam para os outros cubanos. O ar de reprovação generalizado. Quase simétrico. Estavam tão incomodados. Acho que com a falta de respeito alheia.

E percebi. Afinal é simples.

O que eu gosto mesmo é de madeirenses.

Quer sejam cubanos ou não.