Fazer (in)justiça pelas próprias mãos

 

 

“Obviamente demito-o”, dizia em tempos de Ditadura Humberto Delgado a propósito do “quero, posso e mando” do “reizinho” António Salazar. Obviamente não os demito, deliberaria o Primeiro-Ministro António Costa, já em tempos de Democracia, a propósito dos exercícios irresponsáveis ou abusivos de poder de dois dos seus ministros. Afinal, a família é tudo, e tudo é família! Deixar cair os parentes na lama não é de gente de bem, compreensivelmente, e quem disser o contrário apanha com o título de populista para cima e antipatriota para baixo.

Obviamente, não me demito, diria o (ainda?) Ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, depois de admitir que cometeu “erros quer de tempo, quer de avaliação” no caso do bárbaro assassinato do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk à guarda do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

Quando questionado sobre o tempo que demorou no não reconhecimento dos erros de avaliação ou no tempo de reação, Cabrita deixou bem claro que é sempre possível assumir-se sem nada assumir e que a melhor resposta a uma pergunta é outra pergunta.

Conforme dizia, “Eu cometo erros quer de tempo, quer de avaliação. Mas no contexto do que era possível fazer face à tragédia com que fomos confrontados, o essencial foi feito no dia 30 de março. A senhora diretora do SEF podia ter cessado funções na altura? Obviamente que podia. Mas nem o processo-crime nem o processo disciplinar a envolvem”. Quando “encostado às cordas”, sabe-se lá porquê, a Diretora demite-se (Antes ela que eu!).

De costas quentes (só por acaso é amigo de Faculdade do Primeiro-Ministro) Cabrita é a imagem viva de que “os amigos são para a vida” e os amigalhaços da via-sacra partidária são para a eternidade. Segundo reza a lenda, o mesmo sucede em outras geografias políticas. O que não falta são montes de pedras aguçadas e telhados de vidro escaqueirados nas diferentes governações e partidos. Tão natural e corriqueiro fenómeno como a tendência masculina para a calvície ou a propensão de Cristina Ferreira para exceder decibéis.

Obviamente, aceito a demissão do Diretor-Geral, dizia a ainda Ministra da Justiça (Antes ele que eu!) puxando num repente o tapete ao dito cujo, com o beneplácito do Chefe do Executivo. Obviamente, não me demito, repetiria Van Dunem, em refrão. Se tivesse poder para isso, oferecia-lhe uns patins, dava a entender o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. O caso é que só caberia ao Primeiro-Ministro fazer rolar as cabeças, mas ele “que não, que não!” A confiança é uma virtude, certo? Porém, a confiança político-partidária, upa, upa, essa sim, é que é mesmo qualquer coisa de divino!

Vendo-se de mãos atadas, a modos que com “os poderes da Rainha de Inglaterra”, nada mais restou ao Presidente da República que deixar a banda passar, ainda que manifestando necessitar de uma caixinha de Kompensan S.

E daí que se segue? Bora para mais uma Comissão Parlamentar de Inquérito inócua, com honras de transmissão em direto, perguntas para lá, evasivas, mentiras, inverdades, cabalas e anti-patriotismos para cá. Já se sabe, as comissões são para inquirir, não para julgar. Para isso servem os tribunais e é deixar à injustiça o que é da injustiça. Como se sabe, a justiça tarda mas não falha. Ou será: a justiça tarda e as mais das vezes falha? A participação da Ministra da Justiça revelou-se muito esclarecedora: a culpa das mentiras no currículo do Procurador Europeu foi dos serviços. E então não é que a responsável pelos serviços era a própria Ministra!!! Ficaria bem feiozinho e para cima de “relezinhos” Portugal estar na Presidência da União Europeia e atrapalhar-se com este vexame do alegado “arranjismo” ao Procurador José Guerra? António Costa acha que não. O PS acha que não. O PCP acha que nim, respaldando estranhamente esta rebaldaria. Os restantes partidos acharam que sim, que o rei vai nu e não há como cobrir-lhe as partes pudendas.

Para uma larga maioria do atual governo, obviamente que tudo foi transparente, pleno de lisura, isenção e rigor. Numa palavra: Justiça. Ainda me dei à maçada de ouvir os jogos malabares da argumentação “ad nauseam” de alguns representantes do partido socialista, mas foi tudo tão ridículo, tão mal disfarçado, tão coxo e mal-amanhado que acabei por adormecer, não sei se do melodramático embalo, se da olímpica estafa.

Portugal anda nas bocas do mundo e a imagem internacional do país talvez nunca tenha sido tão amarrotada. O terceiro-mundismo europeu agora foi forçado a sentar-se de cócoras perante o Parlamento Europeu para dizer de sua (in)justiça. Não, que nós não somos menos que os outros. Sim, porque em Portugal ainda há lei, Justiça, regras e então de respeitinho pelos seus alçapões, labirintos e hermenêuticas kafkianas nem se fala. Aproveitem, pois, caros concidadãos europeus, a exemplar e absolutamente edificante lição de amizade e fraternidade da nossa (ainda?) senhora Ministra da Justiça e, pelo nome da santa, deixem-se dessas miudezas de meritocracias e outros conceitos idealistas que tais em regimes democráticos.

Da minha parte, como português, devo confessar que me custou assistir ao modo trovejante como António Costa parecia estar a defender um ataque terrorista à obra da Madre Teresa de Calcutá.

Igualmente bonito de se ver foi, já no decurso desta semana, a ministra Van Dunem chamada ao Parlamento Europeu (Que remédio!), a procurar fintar os parlamentares, tentando marcar golos com a mão de Deus, ou em fora-de-jogo, mas consta que por aquelas paragens há árbitros a sério e, no caso vertente de dúvida, para não dizer suspeita, vai ter de haver recurso às imagens e parecer do VAR, até se provar que os lances foram ou não irregulares.

Entretanto, o Procurador da simpatia/amiguismo/confiança política de Costa e da senhora Ministra da Justiça anda algures perdido na assistência até que alguém venha aos altifalantes do Estádio Internacional de Bruxelas chamar a contas o proprietário da viatura de matrícula tal e tal, tão mal estacionado como um elefante na sala, a atravancar o trânsito prioritário de quem cumpriu as regras comunitárias e os normativos europeus.

Tomara que o primarismo com que se tentou disfarçar o indisfarçável e justificar o injustificável, com o descaramento próprio de quem julga estar a falar para um poio de couves, tenha verdadeira e definitiva clarificação, e que daí decorram consequências efetivas. Não a demissão da Ministra da Justiça por iniciativa própria, a avaliar pelo seu discurso e atitude, mas por força da imposição da verdade e do seu apuramento nas mais altas instâncias do Parlamento Europeu, provando-se que a história não está apenas mal contada.

Pode até ser que os protagonistas desta “embrulhada” astuciosa acabem por passar incólumes e durmam o sono dos justos na farfalhuda almofada da impunidade, mas não será menos verdade que a perceção europeia sobre o Estado da Justiça no nosso país já não se furta à inevitável imagem enodoada do vexame e descredibilização internacionais.