Retratos de um Funchal desolado e deserto, inseguro e em semi-confinamento

O Funchal parece, literalmente, uma cidade fantasma. É a consequência inevitável dos excessos das festas de Natal e fim-de-ano. O FN percorreu hoje, de carro e a pé, a urbe depois da hora de recolher obrigatório, procurando captar a atmosfera de uma cidade refém de si própria. A impressão é literalmente, desoladora, expressa numa trintena de imagens que apresentamos, a recordar-nos o primeiro confinamento, ainda íamos nos primeiros meses de 2020. Todos temíamos, então, o novo coronavírus e a sua infecciosidade, mas estávamos longe de imaginar que estaríamos agora com indicadores tão elevados no que à Covid-19 diz respeito.

Hoje em dia não nos encontramos em confinamento total. O mesmo só decorre durante a semana a partir das 19 horas e até às 5 da manhã, principiando, aos fins-de-semana, uma hora mais cedo: entre as 18 h e as 5. Mas a sensação é igualmente entristecedora, para quem conhece o Funchal tão cheio de vida, tão fervilhante de actividade turística e local. Não há literalmente quase ninguém nas ruas. Nem automóveis, nem pessoas. Do ponto de vista positivo, isso atesta que os cidadãos estão a cumprir com o recolher obrigatório. Aqui e ali, um transeunte passeia o cão. Ocorrência muito rara, de resto. Também aqui e ali, vê-se uma pessoa que aguarda pelo último autocarro, sozinha, sentada no banco da paragem. Supostamente já nem se deviam encontrar fora de portas.

Um aspecto concorre ainda mais para a impressão de desolação: ao contrário do anterior confinamento, não se veem pessoas a correr ou a fazer exercício, ainda que sozinhas. Desta vez, não foi, de forma bem clara, salvaguardado esse aspecto depois do recolher obrigatório e os funchalenses trancaram-se em casa. Supostamente só podem sair para passear animais de estimação ou para pequenos passeios nas imediações das suas residências.

A cidade pertence, agora, aos sem-abrigo. São os únicos que por aí ainda se podem ver. No Campo da Barca, um indivíduo parece alucinado, com um comportamento típico do consumo de “bloom”. Dá saltos e piruetas, mostra-se excitado e algo agressivo, conversa consigo próprio. Dois sem-abrigo que com ele se cruzam mostram-se pouco interessados no diálogo, trocam com ele duas palavras e seguem sempre, afastando-se o mais depressa possível.

Mesmo os locais de poiso habitual dos habitantes da rua estão praticamente desertos. É o caso com a Praça do Carmo. Detectamos alguns deles em locais onde se recolhem habitualmente, como a loja de Souvenirs da Rua João de Deus. Parece que mesmo estes “outsiders” buscam um refúgio. Poucos circulam, e quase todos o fazem sozinhos ou em grupos de dois. Não se limitam ao centro. Encontramo-los na Estrada Monumental. Junto à Sé, um deles está  caído no chão, ressonando audivelmente junto à entrada para uma antiga ourivesaria. Teve a presença de espírito suficiente para colocar debaixo de si alguns cartões, mas é só.

Encontram-se muito poucos táxis disponíveis nas principais praças. Aqui um junto à Sé, ali dois junto ao Lido… Muito poucos. Conversamos com alguns profissionais. Dizem-nos praticamente não esperarem clientes. Transmitem-nos um outro sentimento evidente: insegurança, nestas condições de cidade deserta.

De facto, um aspecto fica mais que notório desta nossa volta para “tomar o pulso” à cidade: a presença policial é escassa. Muito escassa. De tempos a tempos passa um carro, uma moto… A PSP está presente no controle aos principais acessos à cidade. Mas, dentro da mesma, o patrulhamento automóvel é raro, o patrulhamento a pé, esse então, parece inexistente. Várias são as vozes que se erguem ao comentarem connosco isto mesmo. As pessoas sentem-se inseguras em circular na cidade depois do anoitecer. Os proprietários temem pelos seus bens, pelos seus estabelecimentos comerciais. Toda a gente parece ter a percepção de que os meios da Polícia de Segurança Pública são insuficientes para uma cidade com esta dimensão, na situação que presentemente se vive. Verificaram-se já alguns furtos, alguns actos de vandalismo. Pouco significativos, é certo. O presidente do Governo Regional, questionado pelos jornalistas a respeito, respondeu manifestando confiança na capacidade da PSP para controlar a situação. Mas a Polícia não tem o dom da ubiquidade, não pode estar em todo o lado ao mesmo tempo. Principalmente se tem falta de meios humanos e/ou materiais. Por outro lado, algo se torna notório nas artérias centrais: o policiamento apeado, dissuasor, hoje praticamente não existe, à noite.

Fica, pois, o retrato de uma cidade em semi-confinamento, que parece já em certas horas uma urbe sujeita a cerca sanitária ou confinamento total. Não há ninguém nas ruas. Não há nada aberto, nada que fazer (mesmo que se pudesse). Falta a muitos a sensação de segurança.

Espera-se, entretanto, que aqueles de entre nós que não se mostraram cuidadosos nos meses anteriores, nas festas de Natal e fim-de-ano, e contribuíram para a propagação do vírus, se tenham divertido a fartar (inclusive nos hotéis de cinco estrelas). Por causa de todos os que não tiveram juízo suficiente, está toda uma cidade, toda uma Região agora a pagar. Em vidas, em economia, e em pura e simples tristeza e desalento.