‘Natais: Contos e Narrativas’, de João dos Reis Gomes

Veio a lume, na passada semana, a reedição de Natais: contos e narrativas, de João dos Reis Gomes. Com a chancela da Imprensa Académica, integra a colecção Ilustres (Des)conhecidos, que pretende lembrar escritores e obras do Património Literário Madeirense, disponibilizando reedições de livros há muitos anos fora do mercado.

Natais: contos e narrativas foi publicado, pela primeira vez, em 1935. Apesar de ter merecido o aplauso da crítica da época e ser referenciada nos meios literários, esta colectânea só agora alcançou segunda edição. As fotografias da capa e extratextos fazem parte do acervo da Direcção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira.

João dos Reis Gomes nasceu na freguesia de S. Pedro, do município do Funchal, em 5 de Janeiro de 1869 e faleceu na sua residência em S. Martinho, no mesmo concelho, no dia 21 de Janeiro de 1950. Oficial do Exército, foi também um distinto escritor, jornalista, director do Heraldo da Madeira e do Diário da Madeira e professor no Liceu de Jaime Moniz e na Escola Industrial e Comercial de António Augusto de Aguiar, tendo sido director deste estabelecimento de ensino técnico. A sua produção literária inclui novela, romance histórico, drama, crítica teatral, estudos filosóficos, diários de viagem, entre outros.

Estes contos e narrativas do Major Reis Gomes, como o próprio refere, são recordações de natais madeirenses, fundamentadas em factos ou na tradição oral. Neste grupo, incluem-se «Chopin e o moleiro», «A espada de S. Paulo» e «Pela Cheia de Natal». «Natal triste» retrata a sua ausência da ilha no tempo da Festa, quando estudante em Lisboa.

Acontecimentos da História da Madeira, narrados no Livro Segundo das Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso, inspiram «Natal heróico e milagroso» e «Natal amoroso e trágico». O primeiro refere-se ao socorro a Safim pelo capitão do Funchal. O segundo gira em torno do amor clandestino de Catarina Teixeira, filha do capitão de Machico, e Diogo Barradas, que veio a ser punido e castrado por Tristão. Se, para o caso de Safim, o texto de Frutuoso menciona que a armada de Simão Gonçalves da Câmara chegou àquela cidade na véspera de Natal de 1509, já para o episódio ocorrido em Machico não aponta qualquer referência temporal. Contudo, o escritor envolveu ambos na festa natalícia.

«’A Santa Família’ de Murillo» evoca viagens e, em especial, visitas a museus de Madrid, Sevilha e Paris, onde o escritor teve ocasião de observar e analisar obras de Murillo, dedicando singular atenção à Sagrada Família, do Louvre.

«A haste de São José» recria, no aconchego do presépio e da árvore, o conto de uma avó ao neto, com um tema da tradição da infância de Jesus, dando relevo à acção do carpinteiro José no seio da família de Nazaré, a qual provém da criatividade popular e não dos Evangelhos.

O último conto desta colectânea faz alusão aos rituais de Natal na Abissínia, terra do mago Melchior, e ao relacionamento conflituoso entre religiões e entre senhores e escravos, sendo, no final, exaltadas as virtudes da caridade cristã.

Escritos numa linguagem cuidada, na qual sobressai a riqueza vocabular e o apurado sentido estético, os contos e narrativas de Reis Gomes documentam também usos e costumes do Natal madeirense: as Missas do Parto e os divertimentos a estas associados («Chopin e o moleiro») ou a lapinha e a árvore de Natal («Pela cheia do Natal»; «A haste de S. José»), por exemplo.

Surpreendente na contística natalícia de Reis Gomes é o topos da aluvião no conto «Pela cheia do Natal». À descrição realista de uma inundação no tempo do Natal, acrescenta o escritor a memória da prática ancestral de aplacar a fúria duma ribeira ou duma borrasca: «lançando-se na enchente uma relíquia ou coisa benta, sossega mais a tempestade; atirando-se-lhe a imagem da nossa devoção, as águas baixam imediatamente.» (p. 56). No caso, em apreço, foi sacrificada bela e antiga escultura do Menino Jesus, legada por benemérita fidalga a uma sua humilde empregada, e que era objecto de particular devoção no Natal ou noutras ocasiões menos felizes, ao longo do ano.

Como, por diversas vezes, confessa Reis Gomes, as vivências da Festa dos tempos da sua infância e da juventude deixaram marcas permanentes na sua memória, que, com efeito, se reflectem nas suas representações do Natal, literariamente expressas em Natais: contos e narrativas.

Gomes, João dos Reis – Natais: Contos e Narrativas. Funchal: Imprensa Académica, 2020. Col. Ilustres (Des)conhecidos; 8. ISBN 978-989-54751-7-9.