Herculina, a “danadinha da peste” – uma proposta de leitura para os dias mansos de um Natal “diferente”

As Aventuras de Herculina (I e II) é um conjunto de dois livros de aventuras, protagonizado por uma “inspectora” por conta própria. Emprestaram-me, há tempos, o tomo I que devorei em dois passos e acabei de ler o segundo volume da/s história/s. Herculina, a personagem principal, faz o melhor que pode para conjugar uma curiosidade natural, um espírito aventureiro e também, convenhamos, um tanto ou quanto “bilhardeiro” (no sentido de curioso), que instiga uma certa “identidade” madeirense.

 

Fernanda Gama desenvolve uma escrita simples que favorece uma leitura interessada e tranquila. Torna-se quase impossível, quando conhecemos o/a autor/a do livro, não tentar descodificar quem, das suas relações próximas, pode estar a enformar a personagem x ou z. Neste caso, contribuímos, enquanto leitores, para uma construção/ideação paralela à do livro, acompanhando-a de uma curiosidade natural e própria de todos os policiais. Empenhamo-nos numa espécie de paraliteratura, sem o saber, mas a verdade é que, quando em contexto de grupo de amigos, comentávamos acerca do livro, acabávamos, invariavelmente, a tentar descortinar quem corresponderia ao perfil das personagens em questão.

 

Ambos os livros percorrem as paisagens e a sociedade madeirense, às vezes entrecortando a narrativa com excertos informativos e/ou descritivos ou com alguns apartes do narrador que podem consubstanciar uma opinião ou uma sentença. Estas conduzem o leitor por uma linha pedagógica, eticamente marcada, característica marcante nos textos desta autora: “tal como nas restantes ruas do Funchal, existem muitos prédios e precisar de recuperação, alguns recentemente intervencionados” (p. 69). São incisivas as alusões à carga burocrática do exercício da profissão docente da sobrinha, a preocupação com os sem-abrigo, o abandono do património e o subsequente favorecimento de “lugares de vício” (neste caso do consumo de drogas).

 

A Tia Herculina “mete-se” em complicações que podem terminar muito mal. Tem tido alguma sorte (não, não vou ser spoiler) mas, para além de nos conduzir por lugares e tempos onde e em que vivemos, alguns com simpatia, outros com justificada apreensão, envolve-nos com uma nostalgia ética e literária. Não são apenas os vincados valores éticos e morais que a movem, é também a recordação de outros livros, de outros textos da infância (pelo menos daqueles que liam histórias quando eram crianças). Claro que podemos sempre invocar a similaridade com as histórias mirabolantes dos “Cinco”, mas esses eram jovens e Herculina é já uma senhora, com “alguma idade”.  Auto-consciente relativamente a essa condição, sintetiza-a numa espécie de reflexão crítica: “- Não me ofendeste. Apenas me chamaste a atenção para algo que talvez esteja a acontecer. Tenho de conseguir acompanhar os tempos. Ora essa! Estou a transformar-me em tudo aquilo que sempre critiquei. Ainda bem que me avisaste. Não me quero transformar numa velha chata, preconceituosa e resmungona” (p. 88).

 

Do Funchal a São Jorge, da família de classe média à mais lastimosa mendicidade, os livros percorrem tempos e lugares que, embora reconhecidos pelos leitores madeirenses ou que vivam na Madeira, não deixam de interessar a um leitor universal: “Enquanto Celeste embrulhava um pão de noiva numa toalha de cozinha” (p.25), o leitor percorre as tradições locais, evoca memórias do passado ou acolhe, com natural empatia, sinais de um costume que ainda subsiste.

 

Os livros organizam-se em capítulos, sem título, apenas numerados. O narrador inclui pistas de compreensão, no segundo volume, para quem não leu o primeiro, tornando, assim, a leitura independente. O policial não esconde metáforas de uma poesia sublime e literariamente muito ricas. Há, nesta autora, em outros livros/textos publicados uma tradição de prosa poética que enobrece os seus escritos tornando-os únicos e registando, desde logo, uma identidade literária reconhecível.

 

Herculina é uma “danadinha da peste”, expressão madeirense que consubstancia a sua vivacidade, a sua vontade inabalável de apurar a verdade e de conseguir justiça: “Os criminosos cometem sempre erros! E ainda bem.  – Concluiu Herculina” (p.191).

 

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As aventuras de Herculina está publicado pela Chiado Editora, disponível em diversas livrarias e plataformas (segundo informação recolhida através de pesquisa no Google).