O poder a qualquer preço!

 

A 21 de Setembro último, entrevistado no programa “Polígrafo Sic” da Sic-Notícias, Rui Rio, o líder do PSD, afirmou que com o Chega não haveria entendimento se “o Chega não mudasse”.

Um mês depois, na sexta-feira anterior às eleições regionais açorianas realizadas a 25 de Outubro p.p., José Manuel Bolieiro, líder do PSD-Açores, em entrevista à RTP, declarou: “Não me sinto vocacionado para condicionar o meu projecto político de governação dos Açores com aproximação ao populismo”.

No rescaldo dessas eleições, em que a direita toda junta obteve uma maioria de deputados (29 em 57), enquanto Rui Rio remetia para a estrutura regional do partido uma decisão,  PSD, CDS e PPM oficializaram uma coligação para a governação da Região Autónoma dos Açores, entretanto saudada pelo líder nacional como uma reedição da Aliança Democrática que em 1979 juntou esses mesmos partidos à escala do país, cuja soma de deputados ficava, porém, aquém da necessária maioria de 29 parlamentares.

Eis então que, numa demonstração de que em política a verdade de hoje deixa de o ser amanhã, o PSD-Açores formaliza acordos para governar com o apoio da Iniciativa Liberal e do Chega, o tal partido populista de que Bolieiro afiançara não querer aproximar-se. Ao mesmo tempo, a direcção nacional do PSD e Rui Rio multiplicavam-se em declarações, procurando evidenciar que as condições acordadas não punham em causa qualquer princípio, limitando-se a estabelecer à direita o mesmo que o PS havia concretizado em2015, a nível nacional, com o BE e o PCP. Rui Rio fez questão, aliás, de dizer que estava de acordo com as condições impostas pelo Chega para dar o seu aval ao novo governo açoriano, designadamente a criação de um organismo de luta contra a corrupção, a redução do número de deputados e a diminuição do número de beneficiários do rendimento social de inserção, da denominada subsidiodependência. Ao mesmo tempo que equiparava a natureza do Chega à do BE e do PCP.  Como argumento foi-se dizendo e escrevendo que se o Chega tem “posições xenófobas e racistas”, aqueles partidos são contra a Europa e a Nato, e amigos de ditadores comunistas. Morais Sarmento, um dos vice de Rui Rio, chegou mesmo a comparar posições xenófobas com a defesa de “uma via revolucionária de desrespeito pela iniciativa privada”. E assim foram normalizando quem pretende ver os ciganos daqui para fora, os imigrantes na terra deles, os pretos em África, os pedófilos castrados e decretada a prisão perpétua e porventura a pena de morte.

Em 1979, com as lideranças históricas de Francisco Sá Carneiro, Diogo Freitas do Amaral e Gonçalo Ribeiro Telles, a então AD rejeitou reconhecer a legitimidade democrática dos partidos, movimentos ou personalidades da extrema-direita. E, por isso, foi recusada a adesão de partidos como o MIRN,o PDC ou a FN. Ou seja, a direita constitucional rejeitava o legado salazarista, Rui Rio estendeu-lhe a passadeira.

Há 24 anos que o PSD não era governo nos Açores. A sede de poder era enorme. Não podia desperdiçar a oportunidade. É esse o caminho que o PSD fará a nível nacional se e quando as eleições o proporcionarem. Se dúvidas houvesse, elas estão, a partir de agora, completamente desfeitas. De resto, havia já quem, como Miguel Albuquerque, o tivesse defendido abertamente, ao ponto de André Ventura o ter convidado para dirigir a respectiva campanha eleitoral. E não certamente por acaso, Ventura andou pelo PSD, tendo sido até candidato à Câmara Municipal de Loures, durante o consulado de Pedro Passos Coelho.

A normalização que a direita fez do Chega pode até trazer mais votos a Ventura na eleição presidencial que se aproxima e tornar indiferente para quem se situe nesta área política o voto nos diversos partidos existentes. E a avaliar pelas sondagens quem tem crescido mais é precisamente o Chega e quem sido mais penalizado, o CDS, pelos vistos tão contente com o acordo alcançado nos Açores.

Um acordo que, pelos vistos, não suscitou especial contestação nas hostes da direita que temos, antes pelo contrário. Até ver, a contestação é escassa. De vozes minoritárias. Como a do abaixo-assinado, sob o título “A clareza que defendemos”, divulgado no jornal “Público” de  1o do corrente mês, subscrito por ex-governantes como Miguel Poiares Maduro, José Eduardo Martins, Francisco Viegas e Adolfo Mesquita Nunes, e por, entre  outros, nomes como Francisco Mendes da Silva, Miguel Esteves Cardoso e Pedro Mexia, em que, não se pronunciando directamente sobre o acontecido, expressam: “Os últimos anos têm sido marcados por uma deriva nacionalista, identitária, tribal. E uma amálgama que faz o seu caminho entre forças da direita autoritária e partidos conservadores, liberais, moderados e reformistas (…) A deriva deve ser enfrentada (..)A aceitação desta amálgama ideológica por parte das direitas democráticas constitui uma afronta à sua história e o prenúncio do colapso moral (..) É preciso deixar bem claro que as direitas democráticas não têm terreno comum os iliberalismos”. Por seu turno, José Pacheco Pereira, membro do conselho consultivo do Conselho Estratégico Nacional do PSD, foi peremptório: “O acordo nos Açores é um grande erro político do PSD que irá envenenar toda a sua actuação futura”. Já Manuela Ferreira Leite, em declaração ao semanário “Expresso”, considera que “a alma do PSD está intacta”. Pacheco Pereira, na sua coluna semanal “A lagartixa e o jacaré” na revista “ Sábado” de 12 do mês em curso, refere, aliás, que “o único argumento que justifica isto (o acordo com o Chega), é o apetite pelo poder, puro e simples, sem princípios, nem valores, ou seja o mundo que se espera do Chega mas não do PSD de Rio”. Nessa edição da “Sábado”, o seu subdirector, Carlos Rodrigues Lima não poupa nas palavras: “a entrada do Chega no arco da governação açoriana deve ser vista como ela é:os fascistas chegaram ao poder” e “agora é só esperar que o Chega faça o caminho dos fascistas do século XXI: infectam o sistema por dentro”. Rodrigues Lima, tendo como pano de fundo o livro “Breve História das Mentiras Fascistas” do historiador argentino Federico Finchelstein, conclui:”A  História julgará o PSD e Rui Rio como os porteiros da entrada do Chega no interior do sistema democrático. Um pequeno passo para o partido. Um enorme passo para toda a corrente de extrema-direita que, tal como um vírus informático, está ávida de percorrer os alicerces do sistema, seduzindo, infectando até ao crash final”. Exagero? Anotem: no seu programa, o Chega defendia em 2019, entre outras coisas, o fim do Sistema Nacional de Saúde e da Escola pública e em Julho deste ano aderiu ao grupo europeu que integra o partido da francesa Marine Le Pen e a Lega do italiano Salvini.

Voltando ao referido acordo, nomeadamente à invocada subsidiodependência dos açorianos, importa não ignorar que os Açores são a região do país com maior nível de pobreza extrema : a sua taxa de pobreza é de 31,8%, já após transferências sociais, segundo o Instituto Nacional de Estatística, enquanto a taxa nacional é de 17,2%. Os salários baixos, as famílias grandes e o homem como “provedor único” da família ajudam a explicar a exposição dos açorianos à pobreza. Não surpreende por isso que, enquanto a média nacional de beneficiários do Rendimento Social de Inserção ronda os 3%, na região autónoma dos Açores o número dispara para 10,2%. E em Agosto passado, 6,1% da população açoriana recebeu o RSI, enquanto a média nacional foi de 2%. Mas, simultaneamente é nos Açores que a prestação por beneficiário é de longe a mais baixa do país. Assim, em Agosto, a prestação média por beneficiário paga foi de 86,7 euros, enquanto o valor da segunda mais baixa foi de 116,7 euros, registada em Évora. Um facto que decorre de as pessoas terem outros rendimentos, em maior número do que no resto do país, nomeadamente “biscates” e “trabalhos precários”, relacionados com a “especialidade produtiva da economia açoriana”, assente na agricultura, no turismo, na construção civil e na pesca. Acrescente-se que, de acordo com os dados mais recentes disponibilizados pelo Instituto de Segurança Social dos Açores, revelados recentemente pelo jornal “Público”, 61,3% dos titulares de RSI são mulheres. Uma maioria feminina que tem sido constante nos últimos anos, reflexo da ausência da mulher do mercado de trabalho, como explicou àquele matutino o sociólogo Fernando Diogo, da Universidade dos Açores e investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais.

Neste quadro, e perante as consequências económicas e sociais decorrentes da pandemia de Covid, questionar a subsídio-dependência dos açorianos é deplorável. É pretender demonizar a pobreza de muitos açorianos, culpabilizando-os da sua situação. Uma vergonha para um partido que se reclama da social-democracia!

Vale a pena referir ainda que a dada altura de toda esta história, Rui Rio tentou colar-se a Angela Merkel, escrevendo no Twitter: “Merkel recusou a AfD nos governos regionais, tal como o Chega que não vai para o governo dos Açores”. Acontece que Rui Rio mentiu. Com efeito, na Alemanha, em Fevereiro, o governo da Turíngia, um estado no leste do país, liderado pelo liberal do FDP Thomas  Kemmerich, só passou com os votos da AfD, juntamente com os da CDU, o partido de  Angela Merkel. Quando soube, a chanceler juntou a sua voz aos muitos protestos: “Foi um dia mau para a democracia. Esta eleição rompeu com uma convicção central da CDU e minha, ou seja, de que nenhuma maioria deve ser conquistada com a ajuda da AfD”. No dia seguinte, Kemmerich demitiu-se. E, em Espanha, recentemente, o líder do PP, Pablo Casado recusou votar favoravelmente uma moção de censura ao governo de coligação PSOE-Podemos, apresentada pelo Vox, o partido de extrema-direita espanhol.

Enfim: Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és!.

Não certamente por acaso, na passada quarta-feira, 18/11, Maria João Marques, economista – que começou por ser colunista no “Observador” -, escrevia no “Público”: “O espaço político da extrema-direita não engloba só o Chega. Inclui os que a promovem e os que não se lhe opõem. Há muitos adeptos da tal nova direita e confessos admiradores de Trump na Iniciativa Liberal. No CDS, Nuno Melo aspira a ser um herdeiro conservador-populista se a estrela de Ventura se apagar. No PSD, tantos admiram pouco secretamente Ventura”, questionando no final “como se resolve este imbróglio ideológico e moral da direita? “Na resposta, começando por “não sei”, acaba por adiantar: “por cá, se ficarem eleitoralmente em cacos o partido da extrema-direita e os partidos facilitadores. Para que renasça outra direita diferente”.

 

     * por opção, o presente texto, foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

 

Post-Scriptum: 1) Festas: A pandemia tem vindo a pôr em causa comportamentos e procedimentos um pouco por toda a parte, inclusive até tradições. Na cidade do Porto, por exemplo, a edilidade decidiu que este ano não haverá lançamento de fogo de artifício na passagem do ano. Por cá, o governo já foi dizendo que nas actuais circunstâncias não haverá a tradicional corrida de São Silvestre. Porém, insiste com o espectáculo de fogo de artifício, afirmando estar a preparar um plano para que as pessoas possam assistir ao mesmo em segurança. Sem barcos no porto, com escassos turistas na ilha e com a crise económica e social existente e a que se perspectiva no horizonte próximo, o bom senso recomendaria que se repensassem estes festejos, até porque ninguém acredita que o espectáculo do fogo não vá provocar ajuntamentos potenciadores de risco de contágio comunitário.

2) Arrasador: “O surto de obras públicas provocou profundas alterações no território” que, “por falta de planeamento e ordenamento, mexeu com o nosso ambiente e as belezas da ilha, alterando a própria distribuição populacional, com o despovoamento do Norte e o aumento da macrocefalia na faixa sul da Madeira”. Acresce que, em algumas situações, “a construção usou e abusou dos solos, sem respeito pelos Planos de Ordenamento, e isso também é visível na redução das áreas agrícola e florestal e na instabilidade de muitas escarpas e taludes do território, que agora estamos a consolidar com elevados investimentos”. E com “a desfiguração da orla costeira da Madeira com intervenções desastrosas que estão hoje ao abandono, temos um retrato claro, mas feio, de uma parte da nossa paisagem”.

Imagina o leitor quem desancou desta forma tão demolidora na denominada “Madeira Nova”? Um perigoso esquerdista? Um “cubano”? Desengane-se. O autor é um tal, sr. Rodrigues, actualmente presidente da Assembleia Regional, e as declarações foram proferidas, há dias, em São Vicente, numa iniciativa organizada pelo “JM”.

Uma ingratidão, ainda por cima depois dos rasgados elogios que a criatura que se auto-intitulava de “único importante” lhe havia publicamente dispensado.

3) Cassete: O “querido e amado líder” made in Quebra Costas continua a pretender marcar a agenda política regional. Repetindo as pretensas “soluções” do costume. Que, está-se mesmo a ver, só servem para manter o impasse. E agitar o espantalho do separatismo, que se diz não se pretender. Tácticas de quem não dispensa o inimigo externo de estimação.