Papa Francisco

“Os homossexuais têm o direito de constituir uma família, são filhos de Deus. O que temos de ter é uma forma da união civil. Dessa forma estão legalmente cobertos.”

Em “Francesco”, o novo documentário do realizador russo Evgeny Efineevsky, o Papa Francisco aborda diversos temas, dando a sua perspetiva sobre diversos temas fraturantes da sociedade atual. Migrantes, abusos sexuais, racismo, perseguições políticas ou religiosas.

Mas estranhamente foram as suas palavras sobre a homossexualidade que fizeram parangonas, ecoaram pelo mundo fora e invadiram os meus chats.

Tenho amigos que me querem inspirada para escrever. Bons amigos. Mas a inspiração não dava o ar da sua graça.

A radical que há em mim, meu único modus vivendi nesta matéria, de forma absolutamente incontrita, não atingia o alcance daquelas palavras. Ou não queria atingir.

Já vem tarde. Too little too late.

O casamento entre homossexuais já é uma realidade em Portugal há dez anos. E o Papa fala de uniões civis, omitindo o acesso ao casamento. Civil e especialmente religioso. Fala da lei civil e não do direito canónico. A legitimidade para o fazer já é outro assunto.

Mas quanto mais pensava, falava e ouvia sobre isso, mais ar entrava na minha bolha. Quanto mais me afastava da minha perspetiva, mais claras se tornavam as coisas. Como aliás, costuma ser.

Há uns tempos tive uma longa conversa com um membro da Opus Dei. Um exercício tão bom como falar com um membro da Opus Gay. Mais interessante, até. A questão da perspetiva, lá está. O excesso de secularização e a aproximação perigosa ao mundano, quando a Igreja almeja ou deve servir de caminho para o Divino, era uma das suas mais acérrimas críticas. A homossexualidade nem entrava na imagem, de tão descabida que era.

Há uns dias tive uma curta conversa com um jovem acólito. A homossexualidade veio à baila. É pecado, obviamente, e um comportamento desviante que tolero, mas não aceito. É pecado porque está escrito nas Livros Sagrados. E porque os padres o dizem.

Há efetivamente menções nos tais Livros Sagrados sobre a homossexualidade, condenando-a. Mas há também menção num desses Livros (Leviticus 11:10), que, das criaturas do mar, só de pode comer as que têm barbatanas e escamas. Não vejo ninguém deixar de comer marisco por causa disso.

A verdade é que a interpretação das Sagradas Escrituras é, para bem ou para o mal, obra humana. Só isso, dirão alguns. Obra humana guiada pela Luz Divina, acrescentarão outros. Mas quem poderá estar mais divinamente iluminado que o ocupante do trono de São Pedro?

E aqui sim, atinjo o alcance possível das palavras do Papa Francisco. Porque o mundo não é a minha bolha, nem Portugal, mesmo com os seus Opus Dei e acólitos. O mundo é muito mais. É um mundo de discriminação de homossexuais, contra quem são cometidos crimes inenarráveis.

O que nos vem dar o Papa Francisco é uma lição de Amor. De tolerância, sim, mas com luz apontada à aceitação. Só assim se pode entender. Se o discurso continuasse a ser o de condenação eterna dos homossexuais, para quê se dar ao trabalho de os proteger?

Poderia ver esta posição cinicamente. É conveniente agora, porque a sociedade cada vez mais caminha neste sentido. É a defesa do mal menor, dêem-lhes união civil para nem falarem de casamento. Estratégia que usou o mesmo Jorge Mario Bergoglio, então Bispo da Argentina, aquando da discussão do casamento de homossexuais naquele país.

Mas escolho vê-la de outra forma. Porque gosto do Papa Francisco. Porque esta posição não lhe era agora estrategicamente exigida e porque politicamente lhe é nefasta, alvoraçando ainda mais os setores conservadores da Igreja Católica. E se há coisa que este homem não é, é pouco inteligente.

Já vem tarde. Too little too late.

Vem, afinal, quando pode vir. Quando a Igreja é liderada por quem tem coragem de o fazer. Pode não ser tudo ou o suficiente. Mas já e alguma coisa.

Nas palavras do próprio, Quem sou eu para julgar?

Um dia estarei, numa qualquer mesa de um qualquer restaurante a almoçar com um membro da Opus Dei, um da Opus Gay e um acólito. Aceitam-se todos. Vamos comer lapas, sem barbatanas e sem escamas.