Oh, jeitosa!

“Ainda bem que não está frio, senão as mamocas constipavam-se”.

Foi o que um revisor da CP disse a Sara Sequeira, que seguia viagem num comboio, usando um vestido verde com decote. Sara sentiu-se incomodada e ofendida. Fez reclamação no livro de reclamações da empresa e, mais tarde, queixa-crime na PSP, aconselhada pela família.

Uma baboseirada, não é?

Não.

Lancei este tópico numa conversa de amigos, mais que ciente que teriam todos a mesma opinião que eu. Ponto por ponto, vírgula por vírgula. Não que só tenha amigos que pensam como eu. Longe, muito longe disso. Qual seria a graça? Mas neste tipo de casos, pelo menos estes amigos, tendem a ver as coisas como eu.

Afinal não.

Foi um balde de água fria que me fez calor. Abanei-me com o leque. Comi uma bola de Berlim para não me dar uma quebra de tensão. A desculpa perfeita. Discutimos muito. A pôr e a contrapor.

Um achava que o que foi dito não é gravoso o suficiente para ser crime. Que as pessoas têm de ser resilientes.  Outro achava que, com aquele decote, ela pôs-se a jeito.

Parámos pelas duas da manhã, para felicidade dos vizinhos. Estava convicta da minha opinião.

No caminho para casa, sozinha comigo, fui pensando no que ouvi. O texto que já tinha escrito na cabeça foi-se desvanecendo. O sono e o copo de vinho também podem ter ajudado.

Hoje decidi repensar tudo.

Continuo a achar que ela tem razão. Nunca poderia achar de outra forma.

Não deveria ter mais de seis anos quando o Joaquim, o velho que vagueava na minha rua e nos meus pesadelos, me ofereceu dois escudos e meio para ver a minha coisinha. Não sabia a que ele se referia. Ainda calculei para quantos gorilas de banana aquilo daria. Mas pelo seu ar libidinoso, apesar da minha inocência, percebi que era errado. Fugi.

Fugi do homem que me perseguiu, agarrou e atirou para cima de um carro, precipitando-se sobre mim. No Funchal. Em plena luz do dia. Eu tinha 13 anos.

Fugi de algumas ruas. De algumas situações. Procurava alternativas mais seguras. Outras enfrentei de cabeça erguida, respondi e ripostei. Outras ignorei simplesmente.

Esta é a vida de muitas mulheres. Pior, das meninas-mulheres.

O olhar persistente, o comia-te toda, o não se afastar nos passeios sussurrando coisas inenarráveis, o toque insistente nos transportes públicos.

Mas nota-se diferença, os homens já estão muito melhores, dizia-me uma colega há uns tempos. Não, querida, nós é que já estamos velhas. As nossas filhas, infelizmente, saberão em breve tudo o que isso é.

 

A maior parte das mães das minhas amigas ensinou-as a ignorar e procurar segurança. A minha ensinou-me a ripostar. A bater se fosse preciso.

Eu aprendi a agir conforme a situação.  Não pensava muito nisso. Já sabia que era parte da vida de mulher. Era a natureza das coisas.

Mas porquê? Porque temos de nos sujeitar a isto? Porque temos sempre de ser fortes? E as que não são?

Em dois mil e quinze, deu-se a alteração do art. 170.º do Código Penal. A tão famigerada lei do piropo. Já começou mal por aí. O piropo não está criminalizado. Estão sim as propostas de teor sexual. Quem me dera ser abelha para pousar nessa flor é muito diferente de anda cá para te espetar o ferrão e estraçalhar as pétalas todas.

O que disse o revisor da CP, dificilmente preencherá os pressupostos do crime de importunação sexual. Aliás, pelos vistos, poucos serão os casos, visto que, apesar do aumento de números de queixas, não se conhece nenhuma condenação. Mais um caso de previsão legislativa vazia. Para inglês ver.

Mesmo que não seja suscetível de constituir crime, não deixa é de ser imoral. Nojento. Asqueroso.

Não pode a liberdade de verborreia masculina, qual síndrome de Tourette misógina e patriarcal ser superior à liberdade feminina de não ser importunada. Vexada. Humilhada.

E depois a defesa do deplorável Pica do 7. “Anda por aí com as mamas à mostra a provocar os homens”.

E isto leva-nos à outra parte que ainda me tira mais do sério. A culpabilização da vítima.

O tal ela pôs-se a jeito.

Tenho pena dos homens que vomitam isto, defendem isto. Rendem-se à sua condição animal em estado puro. Sem intervenção da razão, da civilidade e do respeito pela dignidade do outro.

Fico estupefacta com as mulheres que vomitam isto, defendem isto. Que, paradoxalmente, são ainda mais que os homens.

Como se a herança do tem que se dar ao respeito, vestindo-se modestamente, não fosse herança com dívidas, da qual nos devemos livrar, mas sim acolhida e perpetuada.

Estamos a falar de um decote. Ou de uma mini saia, ou do que quer que seja. Uma opção de estilo, de vontade ou mesmo de afirmação pessoal. Não um atentado ao pudor. Isto quando não acontece a mulheres que até vão vestidas dos pés à cabeça, mas têm o azar genético de serem vistosas.

Estaremos ainda no tempo da “coutada do macho ibérico” do célebre acórdão do Supremo Tribunal de Justiça? Com as devidas distâncias, claro, até pela gravidade dos factos. Poderiam, hoje em dia, dois rapazes ser novamente absolvidos pela violação de duas turistas, porque elas pediram-lhes boleia, sabendo da natureza do homem latino? Porque afinal a culpa foi delas. Quero acreditar que não.

Gostaria de acreditar que a nova geração está a ser ensinada de outra forma. Que as minhas filhas poderão andar na rua sem medo, sem ser incomodadas, importunadas, constantemente relembradas da sua condição feminina que se quer eternamente subjugada à masculina.

Não acredito.

Pelo sim, pelo não, vão as duas aprender judo.