Durante o período histórico que medeia entre 1348 e 1353, uma distância temporal que, no primeiro momento se arreda das nossas prioridades, a vida na Europa ocidental decorria sob uma actividade económica dirigida para o comércio com o Levante e sabemos do desenvolvimento e da riqueza que essa circunstância trouxe a muitas cidades e principados. Itália foi uma das regiões onde a actividade bancária mercantil e têxtil se evidenciou e interessa falar neste momento de Florença, pelos motivos que fizeram nascer a ideia desta crónica. Estará assim tão distante de nós as condições históricas que essa época do «trecento» evoca ?
A experiência colhida através dos séculos vividos pela humanidade revela-nos que, ainda que a História não se repita, ela manifesta-se por uma espécie de cinetismo em espiral, de modo que os factos vão surgindo segundo um eixo comum que os identifica. Desta maneira a memória sai valorizada e robustecida e é necessário que assim se mantenha, para exemplo.
Florença do sec XIV foi uma dessas cidades pujantes, onde se multiplicavam as oficinas e os bancos, onde os mercadores e os banqueiros se afadigavam pelas razões de mercado e pela ambição do lucro, onde as lutas pelo poder se intensificavam entre os mais ricos, onde a política se vinculava à posse de bens materiais, e os mercenários tinham o campo livre para as traficâncias e os desmandos da cobiça e da usura. Florença ao lado de Veneza davam largas à sua rivalidade nesta área de interesses. No entanto é em Florença que neste momento se situam os factos responsáveis por esta convocação.
O tempo é de luxo e abastança para uns tantos. É de pobreza e indigência para muitos. o tempo é de estupfacção, pavor e pânico para todos, igualados na desgraça da calamidade desencadeada por um surto mortífero sem apelação: Na Florença do sec, XIV estava instalada a peste. Assiste-se então a um dos maiores paradoxos que a humanidade tem vivido: O mundo a fugir do mundo…para onde ? A morte a fugir da morte para que refúgio? Os homens entregues à dúvida sobre que poderes existem mais poderosos que o seu próprio poder.
O planeta faz parte dum plano universal fora do contexto pensado pelos humanos. Ele é um elemento pertença duma herança utópica que não pode ser desbaratada, nem considerada liminarmente pelas suas características materiais; herança que só pode ser entendida e usufruída no âmbito duma vontade cultural que a preserve e dignifique sem esquecer que dentro deste contexto estão os próprios humanos. Nós todos.
Por isso, em Florença, um homem entre outros, conscientes de verdades maiores do que o proveito pessoal e egoísta dos seus prazeres, intentou, em plena calamidade que devastava a sua região, por meios anticonformistas e de certo modo heréticos, denunciar os comportamentos corruptos, indecorosos, servis e humilhantes que dominavam a sociedade da época.
Sendo assim não é extemporâneo trazer à memória Giovanni Boccaccio, o homem que, contrariando o desígnio paterno, rico mercador de lã, preferiu dedicar-se à missão de levar os comtemporâneos à reflexão sobre os seus desvios comportamentais, a devassidão, a luxúria, a desonestidade, socorrendo-se duma ficção exemplar: O, agora, mais do que nunca, elevado à tona da literatura mundial, Decâmeron. Nesta obra relevante, um dos elementos que subtilmente realça o espírito humanizante do autor é a sua preferência pelas mulheres, o seu interesse em realçar a necessidade de acreditar no seu valor, de as salvar de ignomínias e da submissão a que as relações sociais e machistas as sujeitavam. A escolha de sete mulheres e apenas três homens para iniciarem a aventura da escrita das várias histórias, proporcionando-lhes um ambiente de conforto e alegria, revela essa particularidade do seu caracter crítico e solidário. O grupo, ou brigata, retirado em Fiesole, em contacto com os campos, as árvores a visão do largo céu, simula uma comunidade harmoniosa e preconiza, por reação ao mundo corrompido, a prática da «temperança, discrição, ordem e virtude». Contenção e abstinência «sem ir além dos limites da razão» O chefe que presidiria à vida do grupo teria de agir em benefício de todos e era escolhido alternadamente entre os homens e as mulheres.
Percursor, sem dúvida, dum novo pensamento, num período devastado da ordem do mundo, Boccaccio aponta, através da literatura, a necessidade de repensar politicamente essa mesma ordem.
Assim temos um «trecento» versus «era tecnológica», ambos assolados, em tempo inimaginado e indesejado por uma tragédia comum, um inimigo invisível e ameaçador, desafiador de todos os poderes.
O que resta é a lucidez dos que intentam na revogação dos cenários miseráveis que têm afectado as nossas sociedades. Quero crer que as calamidades são indicativos prementes das grandes mudanças da História. Quanto a nós, a partir de agora, o futuro se pronunciará. Perturba-nos, contudo, que fique ainda na obscuridade, a qualidade dessa mudança.