O Gorgulho

A Câmara Municipal do Funchal reconstruiu o solário do Gorgulho. Uma intervenção há muito esperada e, por diversas vezes, reclamada. Escrevemos aqui sobre a necessidade de recuperar esta zona balnear em 12 de Setembro de 2018. A obra concretizou-se na segunda quinzena de Junho e primeiros dias deste mês, tendo ficado acessível ao público no passado dia 7.

Um investimento de 40 mil euros permitiu a reposição do solário, limpeza da escarpa e ‘renaturalização’ de uma pequena área. Limpou-se a imagem de degradação. Devolveu-se aos cidadãos o direito de usufruto de um espaço à beira-mar, sobretudo para apanhar sol, pois a qualidade da água do mar não se recomenda.

A situação, por agora, ficou remediada. É fácil prever que uma nova tempestade poderá causar estragos idênticos ou superiores aos de 2018. Talvez, por isso, não seja má ideia pensar pôr a descoberto o calhau, quando a esplanada de betão vier de novo a ser destruída pela forte ondulação. Será menos cómodo, até menos atractivo. Mas a Madeira não pode continuar a atirar dinheiro ao mar. Bastou o que foi engolido pela malfadada Marina do Lugar de Baixo. O mar, impiedosamente, voltará a fustigar o Gorgulho.

No meio da propaganda acerca do início e da conclusão desta obra, a Câmara Municipal do Funchal sempre a ela se referiu como o Solário da Praia dos Gavinas ou Solário do Gavinas.

De um momento para outro, parece ter a Câmara esquecido o verdadeiro nome desta pequena enseada: Gorgulho. Porque compete ao poder municipal zelar pela preservação e valorização da toponímia do concelho, convém lembrar que Gorgulho é topónimo antigo e documentado, pelo menos, desde os finais do século XVI.

Alterar sem razão a toponímia tradicional é, quase sempre, tornar ilegível o nome de um sítio. É matar o espírito do lugar!

Quando se denomina esta pequena praia de Gavinas, recorda-se a alcunha de quem ali instalou um bar e depois um restaurante, onde eram servidos bons pratos de peixe fresco e lapas grelhadas.

Como me explicou o Doutor Raimundo Quintal, a quem agradeço, no Calhau do Gorgulho «existiram dois bares /restaurantes especializados em peixe. Um foi criado pelo velho ‘Gavina’ na década de 60. Posteriormente passou para a posse do filho Agostinho, que vendeu ao Dr. Nélio [Mendonça] para ser explorado pelo filho Zé, que faliu. […]. O outro estabelecimento mais pequeno também nasceu na década de 60 e pertencia ao António, mais conhecido pelo ‘Belhuga’. […] ‘Gavina’ e ‘Belhuga’ eram as alcunhas dos dois homens que construíram os dois estabelecimentos a título precário, porque se localizavam numa área de domínio público marítimo.»

No início dos anos 80 do século passado, ainda ali funcionavam o ‘Gavina’s Restaurante’ e a ‘Toca do Polvo’.

Ao conferir importância à nova ou recentemente inventada denominação Solário do Gavinas, preterindo o topónimo antigo, a Câmara do Funchal está a apagar – admito que involuntariamente e por desconhecimento – toda a História deste pedaço do litoral da freguesia de São Martinho.

O topónimo Gorgulho, que genericamente designava a faixa costeira entre o Ilhéu da Forja e a Ponta Gorda, tem a ver com a pedra da praia. Gorgulho, neste contexto, significa pedra miúda. Trata-se de um geotopónimo.

Este nome surge na documentação oficial depois do ataque dos corsários franceses ao Funchal, em 1566. Como os corsários desembarcaram na Praia Formosa para atacar a cidade, as autoridades começaram a olhar com redobrada atenção a zona poente do Funchal.

Vulnerável quanto à defesa, esta área do litoral permitia desembarque fácil aos piratas e corsários. Em Maio de 1618, trabalhava-se, por conseguinte, na construção de muros e baluarte no Calhau do Gorgulho. Criou-se também a Companhia de Ordenanças do Gorgulho, sendo conhecidos alguns dos seus capitães no século XVII: Fernão Favila de Vasconcelos, Pedro da Silva Favila, Francisco de Noronha Henriques, Pedro da Silva Favila de Vasconcelos e António da Silva Favila.

No primeiro quartel do século XIX, já o Forte do Gorgulho se encontrava bastante arruinado. Paulo Dias de Almeida escreveu que dele «só existe o nome, porque apenas existem restos de paredes sem cal, sem casa de guarnição e com duas peças reprovadas no chão.»

Igualmente bastante destruída estava a muralha do Caminho da Trincheira, que ligava o Forte à Quinta do Calaça.

Uma réplica do Forte do Gorgulho, desenhada segundo uma planta setecentista, veio a ser construída nos anos 80 do século passado. Integrada no Complexo Balnear do Lido, foi inaugurada em 21 de Agosto de 1987.

Conservar e compreender a toponímia é um exercício de cidadania. Ilhéu do Gorgulho, Rua do Gorgulho (onde se situava o Hotel Gorgulho, actualmente denominado “Tiles”) e Praia do Gorgulho são designações que perpetuam a memória deste lugar.

Com o nome “Gorgulho” navegaram também dois navios, com presença assídua nos mares da Madeira e Porto Santo: um propriedade da Parceria Geral de Pescarias, conhecido por, na Segunda Guerra Mundial, ter  recolhido 19 sobreviventes do navio britânico “Aurillac”, torpedeado pelo submarino italiano Enrico Tazzoli em 15 de Abril de 1941, a 350 milhas ao norte do Porto Santo; o outro, da Empresa Insulana de Navegação, um navio-fruteiro, mas também de passageiros, precursor na carreira Funchal-Porto Santo, foi construído na sequência do famoso Despacho 100, de 10 de Agosto de 1945, que reorganizou a marinha mercante portuguesa e possibilitou a renovação da frota da empresa liderada por Vasco Bensaúde. Mas isto é outra história.