Muito obrigado, Capitão

Permiti, Senhor, que vos trate por tu. É menos formal. Adequa-se melhor ao meu desabafo.

Colocaram-te nesse pedestal, quando nestas ilhas se celebrou o Quinto Centenário da tua primeira viagem. O cinzel de Francisco Franco deu-te rosto e corpo. Desde então, vens observando em silêncio a cidade que nasceu da tua vila.

Hoje os pregoeiros dos 600 anos não querem saber de ti. Só a Marinha Portuguesa te prestou homenagens em Agosto passado, deixando aqui uma coroa de flores. Mas os da governança da terra não aplaudiram tão nobre gesto.

Desembarcaste numa «terra brava e nova, nunca lavrada», como escreveu o primeiro cronista. Ilhas desabitadas. Contudo, a elite, que há mais de quarenta anos tomou o poder, acha que nesse longínquo tempo já por aqui vivia um povo superior, eleito entre os humanos para se fixar neste rochedo atlântico.

Recusaram, por isso, no seu brasão, como divisa, aquele conhecido e verdadeiro verso do canto V d’Os Lusíadas, do grande Camões: «Das que nós povoámos a primeira». E lá inscreveram improvisado fingimento ao gosto de Narciso: «Das ilhas as mais belas e livres».

Como bem sabes, a apreciação da beleza depende da educação e do gosto de cada um, não do espelho. Quanto à liberdade, nem no rebanho vinga, pela peçonha intolerante continuamente destilada. Por todo o lado, construíram redis vigiados por zagais e bufos, fanáticos do poder.

Lembras-te quando te rias daquelas mesas do Golden, ocupadas pelos senhores da terra que solenemente depositavam os seus chapéus nas cadeiras vagas? Pois, hoje eles não usam chapéu preto nem se sentam nesse café, mas continuam os mesmos poderosos, através de filhos e netos, como as oligarquias da tua época.

Isso da Madeira Velha e da Madeira Nova é pura falácia!

O poder político está nas garras do poder económico. Sem meios nem vontade para o resgate. Pior, agora também a imprensa ficará prisioneira desses senhores do dinheiro.

É verdade que duas medidas perturbaram o velho esquema: o fim da colonia e a criação de uma universidade. Alterou-lhes o caminho. Souberam, porém, dar a volta. Arrebanharam mais alguns e fizeram o que puderam por si e pelos seus.

Se a extinção da colonia libertou parcelas de terra, poucos já as cultivam. Se abundam escolas, a ignorância e a falta de educação continuam a reinar. Nada que a propaganda não oculte ou dissimule.

Nesta terra, uma mulher desbocada dizia, para quem a quisesse ouvir, que ficou com o rabo a arder, mas arranjou a sua casinha e trabalho para todos os da sua família. Até dos mais pobres se serviram brutalmente, antes de os atirarem para a lixeira. Perversamente, lugares da administração foram sendo preenchidos com silêncios e cumplicidades.

Foto Rui Marote

O povo continua adormecido e a não dar valor ao que possui. Nem parou para reflectir, quando um ser não vivo arrasou o mundo.

Tudo parece ruir. A pedincha cresceu muito. Mas lá por Lisboa também andam com as calças arriadas. Não há um saco de dinheiro atrás da porta do Terreiro do Paço. Ninguém sabe como vai ser. Na crescente despesa, a galope aumentada pelo casamento de fachada, ninguém quer cortar. Os grandes pedem muito. Os pequenos reclamam pão e trabalho. O velho remédio – embarcar – já não pode ser prescrito. O povo voltará a desbravar o matagal e semear, como tu mandaste fazer nos primeiros anos.

Destas misérias, bem sabes. Mas eu não vim só desabafar.

Por estes dias, faz seiscentos anos que desembarcaste nesta ilha para povoá-la. Zurara, que, por certo, bem conheceste, fixou o ano: «E foi o começo da povoação desta ilha no ano do nascimento de Jesus Cristo de mil quatrocentos e vinte anos.»

Mais tarde, Jerónimo Dias Leite, cónego da Sé do Funchal, lendo uma narrativa que os teus descendentes guardaram, precisou ser no início de Julho, no dia da Visitação de Santa Isabel.

Há seiscentos anos iniciaste o povoamento desta ilha, por ordem do rei D. João I. Distribuíste terras, zelaste pelo bem comum, pela ordem e a defesa. Foste o capitão da barca, a primeira autoridade na ilha, o capitão do donatário, o criador de uma nova sociedade no Atlântico. Presidiste à Câmara do Funchal. Foste, enfim, o primeiro obreiro do povoamento da Madeira. Com o teu labor, a terra prosperou. Novos moradores vieram. Criaste riqueza. Proporcionaste rendimentos ao Infante e à Coroa.

Como te esquecer, quando se celebram seiscentos anos do teu desembarque na ilha, que já conhecias em mapas e da qual já tinhas ouvido falar, nas longas cavaqueiras com homens do mar?

No Quinto Centenário, ergueram-te imponente estátua. Hoje nem uma singela coroa de flores! Talvez fosse melhor assim, porque nunca te habituaste a longos arrazoados, e dessa altura um desmaio seria fatal.

A História não se faz só com os grandes. Mas é justo lembrar o teu vigoroso empenho para da terra brava arrancar sustento e riqueza, governar a sociedade, que nascia, e criar as primeiras instituições, que cuidariam de homens e mulheres e dos seus bens.

Muito obrigado, Capitão.