Conceição Estudante: “A história do Armas é um mito que as pessoas já deviam ter desmontado”

Fotos: Rui Marote

Conceição Estudante foi, nos governos jardinistas, maioritariamente masculinos, uma das mulheres que mais se destacou numa série bastante diversificada de áreas. Recebe amanhã, Dia da Região, a Insígnia Autonómica de Valor. Licenciada em Direito, com pós-graduação em Administração Hospitalar, a sua acção fez-se sentir, ao longo da sua carreira, na esfera pública e privada, numa variedade de acções, dos recursos humanos aos assuntos sociais, da hotelaria ao turismo, dos transportes à cultura. Foi responsável pela gestão do então Centro Hospitalar do Funchal. Esteve ainda ligada, no âmbito privado, à sociedade “Savoy” e dirigiu hotéis no Funchal. De directora regional de Turismo subiu a secretária regional, primeiro dos Assuntos Sociais, depois do Turismo e Transportes, e finalmente governou nas áreas da Cultura, Turismo e Transportes.

A atribuição deste galardão pelo Governo Regional foi o pretexto para uma conversa descontraída na qual o FN abordou múltiplas questões, desde a pandemia aos problemas de gestão hospitalar, relações com a classe médica, assuntos de transportes aéreos e marítimos, entre as quais o tão falado caso do ferry do “Armas”, cultura, pobreza, assistência social, subsídio de mobilidade… Conceição Estudante falou livremente e não tentou fugir a perguntas. Continua a ser uma mulher de convicções, e não embandeira em arco com as condecorações, embora reconheça que foi “agradável” a “palmadinha nas costas” que representa.

Funchal Notícias: Passou por uma série de áreas governativas: saúde, segurança social, transportes, turismo, cultura… Qual desses pelouros, que teve sob sua responsabilidade, foi de alguma forma, mais gratificante?

Conceição Estudante: As áreas sociais são sempre muito difíceis mas muito gratificantes. Foi aí que senti mais o resultado visível do trabalho. Muitas vezes é imediato, e conseguimos ver o efeito que produzimos nas pessoas. A gratificação provém disso, do resultado que produzimos nos outros. Geralmente [na governação] temos a noção de que fizemos mais ou menos, bem ou mal; mas ver o efeito nos outros, para mim é o que me dá gratificação, e isso só se consegue na área da Saúde ou na área social. Sobretudo na área social, no apoio às populações. Posso, nomeadamente, falar-lhe no apoio à vítima de violência, na criação dos Centros de Dia, de lares [para idosos], de centros de ocupação de tempos livres… Tudo isso eram manifestações visíveis. O turismo é diferente. Costumo dizer que o turismo dá “mundo”, dá uma perspectiva muito mais integradora da vida, das pessoas. Fiz coisas muito interessantes e que me deram muita satisfação, mas gratificação é um significado diferente.

FN – Mas ao mesmo tempo, a área social é muito complicada, em que é preciso discernir o trigo do joio, quem realmente precisa de apoio daqueles que às vezes se aproveitam do sistema…

CE– É verdade, e isso é sempre difícil. Por muito que se criem sistemas e protocolos de apreciação e análise, há sempre possibilidade de que haja abusos aqui e ali. Mas devo dizer que na maioria das situações, as pessoas que são apoiadas carecem mesmo desse apoio. Há é situações sociais, elas próprias, insusceptíveis de serem ajudadas. A capacidade de dar a volta por cima de certas situações sociais deixa de existir.

FN – Isso tem muito a ver com questões de educação, não é verdade?

CE – Sim, de educação… de condições de vida, de crescimento das pessoas… No fundo, são as condições em que as pessoas se encontram quando vêm a este mundo, e que, em alguns casos, conseguem superar. Mas em muitos não conseguem. Por exemplo, quem cai no excesso de consumo quer de álcool, quer de droga, depois tem muita dificuldade em reintegrar-se. A aposta, muitas vezes, fazia-se já na segunda ou terceira geração. Porque a primeira… já estava demasiado para lá do limite da recuperação. São situações que criam desespero e angústia nos profissionais, em todas as pessoas envolvidas neste processo. É por isso que a área social é uma área dura. Há que encontrar formas de superar quer essa dificuldade, quer a escassez de meios… porque nunca há meios que cheguem para fazer face a tudo o que é necessário.

FN – Falemos de duas situações muito concretas que afectaram a Região e continuam a afectar ainda hoje, o alcoolismo e a violência doméstica. São índices em que estamos entre os piores do país…

CE – Já estivemos melhor. Já estivemos a descer bastante, e praticamente ao mesmo nível [que o resto do país] mas eu julgo que, como tudo na vida, isso obedece a fases, ciclos. E é sempre difícil perceber exactamente o que faz desencadear esses problemas. Muitas vezes, são as tais situações sociais, de crise… Uma situação como a que estamos a viver agora, por exemplo, é potenciadora desse tipo de problemas. Quando há crises de desemprego, esses problemas podem ser emergentes… É um tema debatido hoje em dia, aliás. O confinamento gera violência doméstica, o desemprego também a gera, e consequentemente a procura de álcool oi drogas, ou qualquer outra substância, que cause um hábito nocivo. As pessoas fazem-no porque vão à procura de uma felicidade efémera, que não encontram na sua vida normal…

FN – Com a sua noção do turismo, e a panorâmica que dá, peço-lhe que comente coisas que são contraditórias em nós, madeirenses. Temos fama de saber receber bem os visitantes. E orgulhamo-nos do nosso rincão, o nosso “cantinho do céu”, um lugar relativamente sossegado, comparado com muitos outros. E no entanto temos índices elevados de alcoolismo, de violência doméstica que inclusive redunda em crimes de sangue. Porquê?

CE – Não tenho os números actuais. Admito que sejam elevados. Mas não sei exactamente qual é a evolução. No caso concreto da violência doméstica, quando avaliei a situação, e quando começaram, a determinada altura, a emergir muitos casos, a minha interpretação, e a das pessoas com quem debatia estes assuntos internamente, era a de que a visibilidade que estava a ser dada, os apoios que estavam a ser criados, as condições que estavam a ser proporcionadas à maioria das vítimas, que são mulheres, estava a permitir que elas pudessem fazer emergir o seu caso. Porque uma mulher casada, totalmente dependente do marido do ponto de vista financeiro, sem apoio ao nível da comunidade, com filhos dependentes, vai sempre esconder a violência de que é vítima. Não tem como sair daquilo. As mães têm, por regra, um instinto de protecção das suas crianças. Só quando as mulheres conseguem um trabalho, um rendimento, alguma garantia de sozinhas poderem sustentar os seus filhos, por via de apoios que vão criando, é que conseguem emancipar-se e denunciar a situação. Acabam por ter vidas novas.

FN – Sente que realmente se conseguiu, ao longo dos anos, transformar positivamente esta situação?

CE – No período em que acompanhei estas situações, senti que havia uma capacidade maior das mulheres denunciarem, saírem de casa, irem para uma casa de abrigo, poderem tentar uma carreira sozinhas, um emprego… É fundamental tê-lo, para não ter dependência financeira [do marido]. Ninguém se vai pôr na rua com as crianças, e depois? Acabam por suportar uma violência que é péssima mas que, em determinadas situações, é impossível de enfrentar, porque a sua capacidade de independência está reduzida a zero, ou a muito pouco. O que é preciso é a capacidade de potenciar uma vida alternativa. E de várias maneiras, pois não há uma situação só. Cada caso é um caso. E, embora eu esteja a apontar o problema da pobreza, não se tenha a noção de que a violência doméstica só acontece nas classes sociais baixas. Também acontece nas outras, e aí entram outros factores.

FN – Houve casos bastante mediáticos na RAM de violência doméstica que redundaram em graves crimes passionais, inclusive de assassinato.

CE – Exactamente. E não era por carências financeiras. É uma patologia.

FN – Como mulher que teve actividade governativa em diversas áreas, sente que ainda persiste hoje na sociedade um machismo, uma necessidade de afirmação masculina à moda latina, que ainda não se esbateu?

CE – Já não tem nada a ver com aquilo que era. Ainda há… mas numa sociedade as situações não são nunca todas iguais. Do preto ao branco há toda uma série de tonalidades. Mas para fazer uma análise dessa natureza temos que olhar para o conjunto. E penso que a sociedade portuguesa sofreu uma evolução nos últimos 40, 50 anos, que ocorreu a uma velocidade muito superior, digamos, que nos 50 anos anteriores. Não tem nada a ver. A abertura à Europa, as vias de comunicação de todas as formas e feitios, a abertura ao exterior… E nomeadamente aqui na RAM, tudo isso permitiu transformar as coisas, bem como os níveis de qualificação profissional que foram evoluindo, o número de mulheres a tirarem cursos superiores foi aumentando, a tal independência feminina foi-se garantindo, a introdução dos métodos contraceptivos também ajudou a uma emancipação… Tudo isso levou [as mulheres a ter ] uma capacidade de decisão que anteriormente não existia.

FN – O desemprego arrasta consigo toda uma série de problemas sociais, muitos deles graves. Como olha para a presente situação de pandemia da Covid-19? Imagino que alguém que trabalhou em turismo, em saúde, áreas que estão tão em causa neste momento, olhe para o cenário actual com alguma preocupação…

CE – Olho com alguma angústia relativa…

FN – Somos muito dependentes do turismo e enfrentamos agora uma situação difícil; por força do todo nacional, estamos como que “riscados” do mapa de certos destinos emissores muito importantes, como a Grã-Bretanha. Como olha para o provavelmente difícil futuro que se avizinha?

CE – Procuro sempre manter o optimismo, com algum realismo. Nós vamos passar por momentos difíceis, não tenho qualquer dúvida quanto a isso. Mas também acredito na nossa capacidade de resolver problemas e ultrapassar situações. Esta situação não durará sempre. É transitória, a pandemia colocou em causa a própria estrutura da economia mundial. Obrigará a reinventar muitas coisas.

FN – Há situações, porém, caricatas… Espanha, que estava muito pior que Portugal em termos de Covid-19, abre-se ao turismo e há destinos emissores que mandam para lá os seus turistas, mas não para Portugal…

CE – São tempos. Eu não tenho muita fé nessas soluções… O que está bem agora, vamos ver daqui a quinze dias o que acontece…

FN – Há sempre o risco de uma segunda vaga…

CE – Também não estamos tão mal em Portugal, com se quer fazer crer lá fora, penso eu. Estamos com um número de novos casos que desejaríamos que fosse mais baixo, mas também não é nenhum exagero por aí além. Há medidas que deviam ter sido tomadas mais cedo, e não foram. Mas isso, pronto. Acredito que teremos de sair disto. Mas neste momento, a tomada de decisões é extremamente difícil.

FN – Há quem esteja a reclamar por uma intervenção directa do Governo Regional junto das embaixadas dos diversos países emissores do turismo, para esclarecer que a Região Autónoma da Madeira está numa situação muito melhor, no que à Covid-19 diz respeito, do que Portugal em geral está. É exequível, do seu ponto de vista, este tipo de intervenção, para que a Madeira não fique prejudicada com a actual imagem de Portugal?

CE – Creio que não. Há poderes de soberania que são do Estado. Nós podemos manter contactos com as embaixadas, mas fazemos parte de um todo nacional… Julgo que as coisas não podem ser feitas de tal forma, atabalhoadamente. Nem tudo é possível. Por outro lado, esta abertura que se vai começar a fazer a partir de amanhã também tem os seus riscos. É preciso ponderar muito o que fazer, porque isto é um espaço territorial muito limitado, com uma densidade populacional elevada e com serviços de saúde que também são limitados…

FN – Uma das incógnitas é se o Serviço de Saúde da RAM terá realmente capacidade para enfrentar um crescimento exponencial da pandemia…

CE – Até agora teve… Mas se houver um crescendo repentino, pode deixar de ter. Essa é uma das razões que os nossos governantes têm muito presente na sua tomada de decisões. Nós temos um único hospital que tem de dar resposta aos casos emergentes desta situação, mas que não pode deixar de dar resposta a todas as outras situações que existem! Os meios são sempre limitados, e temos que geri-los da melhor forma. É verdade que nós não podemos continuar fechados, se toda a gente abrir; mas temos que abrir com cautelas, e com as reservas possíveis numa situação destas.

FN – E não deveríamos já ter mais do que um único hospital? Não deveríamos ter um novo hospital já há muito tempo, em vez de termos apostado noutros investimentos?

CE – O novo hospital estava pronto para arrancar quando eu saí [da Secretaria dos] Assuntos Sociais. Não aconteceu porque houve o 20 de Fevereiro de 2010, e porque as verbas que estavam consignadas ao hospital tiveram de ser desviadas para outras necessidades emergentes. Podia ter sido, mas não foi, pronto. Mas também o nosso hospital da Cruz de Carvalho não é assim um hospital tão velho quanto isso. Há hospitais muito mais velhos e ainda a funcionar. E nós não precisamos de ter um número de camas de internamento hospitalar que seja o dobro do que temos neste momento, nem pouco mais ou menos. Aliás, porque as novas formas de intervenção na saúde são de muito curta permanência, privilegia-se o ambulatório. Com as novas vias existentes, as pessoas estão muito próximas do seu hospital. Ficarão o mínimo de tempo necessário no internamento e vão depois para as suas habitações normais, acompanhadas naturalmente pelos serviços de saúde. Essa é a tendência. Por isso não precisamos de ter um enorme número de camas de internamento. Precisamos é de ter equipamentos adequados ao estado da arte no momento em que elas são criadas. E isso é o que se está a tentar fazer.

FN – Precisamos de ter médicos, também, não é verdade? No seu tempo, o SESARAM ainda era tido como uma referência a nível nacional. Muitas críticas têm surgido ao longo dos tempos até agora, no sentido de apontar que perdeu essa vantagem…

CE – Não queria muito fazer esse tipo de avaliações. Mas acho que neste momento concreto, o SESARAM deu provas de que… às vezes é preciso que surja uma situação de crise para emergir a capacidade de resposta. Neste momento, deu-a… A capacidade está lá. Houve muitos conflitos, houve muitos mal-entendidos…

FN – A classe médica é complicada de se lidar, do ponto de vista administrativo?

CE – A classe médica tem as suas características próprias, a classe de enfermagem também, os técnicos auxiliares de diagnóstico e terapêutica também… Eu diria que o ambiente hospitalar é um cosmos onde é preciso agir “cirurgicamente”. Diplomaticamente, são todos os sectores, mas aquele, exige a delicadeza de um cirurgião. Não se pode entrar de qualquer jeito, sem primeiro convencer as pessoas de que a mudança é útil e necessária, para eles próprios. Se as pessoas aderirem ao processo, então, a coisa vai.

FN – É um sector muito conservador? Pouco propício à mudança?

CE – Não há nenhum sector propício à mudança… As pessoas acomodam-se. A frase que mais se ouvia na administração pública, quando se perguntava “porque é que isso se faz assim?”, é: “Porque sempre assim se fez”.

FN – Mas os médicos, afinal, são uma classe privilegiada, ou não são? A pergunta coloca-se, quando durante anos ouvimos tantas críticas aos mesmos e agora, perante a pandemia, são alvo de aplausos e as pessoas já concordam mesmo com melhores condições reivindicadas para a profissão… As coisas, por vezes, são contraditórias!

CE – Nós só damos valor às coisas quando as perdemos. Em tudo. Os médicos intervêm numa área extremamente delicada, que é a vida, é a saúde. Os médicos, os enfermeiros, todos os técnicos de saúde, de modo geral. Quando as pessoas estão dependentes dos médicos é que lhes dão valor. Criticar é muito fácil. É preciso habilidade na tomada de decisão política, muita ponderação. Porque qualquer decisão que nós tomemos, seja em que área for, tem consequências. Há sempre dois lados numa moeda, e é preciso avaliar bem quais os efeitos negativos, quais os positivos… No fundo, trata-se muitas vezes de decidir o mal menor. Se se resolve que “é assim porque eu quero e porque eu decido”, nem sempre dá resultado. Às vezes é preciso fazer isso. Mas outras vezes não resulta. Acho que a matéria-prima existe. Ainda não temos o novo hospital, mas aqueles que temos estão a funcionar. Mais do que o hospital, preocupa-me a falta de camas em lares de idosos, o acompanhamento dos doentes que têm alta e que não vão para casa porque as famílias não têm condições para lhes dar… Isso cria um excesso de doentes internados que não se justifica, deveria ter outra solução. E, inclusive, uma solução mais barata, porque o internamento hospitalar é muito mais caro do que num estabelecimento que preste apenas cuidados essenciais de higiene, de administração de medicamentos, etc. Uma cama hospitalar tem um custo associado. Mas não é fácil de resolver, eu sei que não é…

FN – Já agora, relativamente ao novo hospital, o que acha de as sete empresas convidadas a apresentar propostas para a sua construção não terem apresentado nenhuma, justificando a atitude com a conjuntura criada pela pandemia, obrigando o Governo Regional a abrir novo concurso internacional?

CE – Não tenho acompanhado isso. Estou a ver de longe, a realidade, afastei-me um bocado. É de prever que, com um panorama desses, o novo hospital vá demorar mais algum tempo. Embora as peças já estejam todas preparadas. Abrir um novo concurso é um procedimento relativamente expedito, a menos que haja alterações…

FN – Provavelmente o novo hospital irá custar mais caro à Região, coisa que o Governo não queria.

CE – Nunca ninguém quer pagar mais. Eu teria de ver muito bem a argumentação apresentada pelas empresas, para me pronunciar sobre se as razões invocadas pelas mesmas são lógicas ou não. Depende do custo dos materiais, dos equipamentos… Não tenho condições para avaliar isso correctamente, mas a pandemia trouxe outro tipo de custos na produção…

FN – Falemos dos transportes, uma área que esteve também sob sua alçada. Justa ou injustamente, é difícil afastar a imagem de que foi no seu consulado que se afastou um operador de tráfego marítimo, o Armas, que ajudava a manter uma ligação marítima com a RAM, através da imposição de demasiadas exigências e taxas portuárias. Como comenta essa situação? A RAM neste momento permanece bastante isolada, com um volume de tráfego aéreo bem menor que antes. Temos poucas alternativas, vamos reabrir agora os aeroportos, mas vamos receber muito menos turistas que antes e ter menos viagens do que tínhamos antes. Não se poderia ter feito mais alguma coisa para manter o operador marítimo a funcionar, ajudando a atenuar a nossa insularidade?

CE – A questão do operador marítimo é muito simples. Se o Governo tiver meios para pagar… É mesmo assim! É para o Governo pagar! Porque as viagens entre a Madeira e o continente não têm número suficiente para serem auto-sustentáveis, em termos de operação económica.

FN – A oposição desmonta essa argumentação invocando que é preciso incluir transportes de carga nesse tipo de avaliação.

CE – Mas não é verdade. O que o Armas transportava de carga para a RAM, não chegava a 10 por cento do abastecimento regional. É a carga perecível, que vem nos camiões contentores, não é 90% da outra carga, que vem pelos cargueiros normais que abastecem a Região duas ou três vezes por semana. Os ferries não são feitos essencialmente para a carga, mas para o transporte de pessoas, auto-transportáveis ou não. Se estamos a falar de um navio que transporta mais de mil e tal passageiros em cada viagem… Aliás, mais do que qualquer outra coisa que eu possa dizer, o que aconteceu nos 3 meses em que o barco funcionou e ver qual foi a taxa de ocupação é a melhor resposta. Fala por si. Criou-se um mito. A história do Armas, para mim, é um mito que penso que, nesta fase, as pessoas já deviam ter desmontado. Se ainda não desmontaram, olha, tenho pena. Mas acho que já houve factos posteriores à minha saída do Governo Regional que o provaram. Havia quem dissesse que seis meses depois o Armas estava aí. As coisas não são assim tão simples. Aliás, ninguém pôs o senhor Armas daqui para fora. Nem aumentou fosse o que fosse na altura em que ele saiu. Ele tinha era condições que desde o início existiam, e que queria que fossem retiradas. Isso, no fundo, correspondia a pagar pela operação deficitária que o barco tinha. Como teremos um problema também nos transportes aéreos, se não houver subsídio de mobilidade. A operação não é sustentável, mesmo com aqueles preços exorbitantes que se estão a fazer. Acho que já houve factos suficientes para quem quiser analisar a situação, de forma isenta. Não tenho nada que me defender. Estou perfeitamente à vontade, não tenho qualquer peso na consciência relativamente ao que foi feito, ou deixou de ser. Acho que a situação falou por si.

Numa feira turística em Hannover, Alemanha

FN – Entretanto e relativamente à situação dos transportes aéreos, temos neste momento uma situação que não poderia ser mais complicada: estamos no meio de uma pandemia, temos operadores turísticos que querem mandar pessoas para cá mas não podem porque os seus governos nos estão a marcar como uma “zona vermelha”, e no meio disto tudo há um grave problema com a TAP, que aparentemente vai obrigar a uma nacionalização…

CE – Com nacionalização ou sem nacionalização, a TAP precisa de dinheiro público para se sustentar nesta altura.

FN – Mas de que forma é que tudo isto poderá afectar os transportes para o arquipélago?

CE – Penso que haverá suficiente bom senso para que as ligações entre o continente e as regiões insulares seja sempre garantida. Nem que seja pelo recurso ao antiquíssimo serviço público, que não era uma solução desejada. Mas eu tenho confiança de que as soluções surgirão. Repare que antes de haver autonomia, antes de haver Governo Regional, essas soluções aconteceram, quando tínhamos um governo central que mal olhava para as ilhas. Porém, a partir dos anos 60 conseguiu uma solução. Agora, com uma maior capacidade de intervenção, com uma integração europeia, com forças que se gerem de uma maneira diferente, vai com certeza surgir solução.

FN – Os madeirenses continuam a interrogar-se, todos os dias, sobre as ligações aéreas…

CE – Penso que todos os madeirenses, quando querem viajar, conseguem lugar no avião, e vão. O problema, neste momento, são os preços exorbitantes. Mas têm o subsídio, que já vai compensando.

FN – Acredita que se houver nacionalização alguma coisa mudará para melhor?

CE – Também não está ainda decidido. A companhia era nacionalizada e existiam problemas; toda a gente dizia que era por ser nacionalizada que havia os mesmos; passou a ser privada, continuou a haver problemas…

FN – Acha que foi bem feita, por parte do Governo, a liberalização das ligações aéreas?

CE – Acho que sim, porque se não fosse isso, não tínhamos tido o crescimento do tráfego aéreo que tivemos a partir daí, não tínhamos alternativas low-cost como apareceram depois… Tínhamos os transportes aéreos que eram contratualizados pelos tour-operadores, e entretanto essa situação começou a diluir-se por força da influência das reservas directas via Internet e reservas directas nos aviões. A influência dos tour-operadores mantêm-se, mas de uma forma completamente distinta. Hoje em dia, podemos marcar uma viagem num voo charter de um modo diferente do que anos atrás. Mas se não tivesse havido a liberalização, não teria havido a evolução que houve.

FN – O Governo Regional não deveria ter acautelado melhor a negociação do subsídio de mobilidade?

CE – Na altura foi, o que não foi, foi actualizado. O Governo central nunca fez actualizações, como estava previsto no próprio diploma, que previa que dentro de um ano, seria revisto. Só que as crises sucessivas e a falta de dinheiro levam a que o Governo central não responda. Então, como agora. Sejam quais forem os governos. Passam-se pelas cores e tonalidades diferentes e a solução continua adiada.

FN – Acha que há sempre uma tendência para tratar diferentemente a Madeira em relação ao todo nacional?

CE – Estamos longe. Há um centralismo natural em Lisboa.

FN – É isso, ou é a ideia de que temos um estatuto político-administrativo e temos de nos haver com ele?

CE – Não é bem essa a minha interpretação, até porque os transportes nunca foi matéria de tratamento regional…

FN – Mas persiste aquela ideia de que o madeirense é privilegiado em relação ao português médio.

CE – Não sei. Não sei se hoje em dia se pensa assim. Houve uma altura em que sim, mas hoje em dia, não. Porque também com a abertura que foi feita ao mercado português, com a quantidade de turistas nacionais que vieram à Madeira nos últimos 20 anos, transformou-se a imagem que havia no continente sobre o que se passava aqui. A constatação da evolução, que foi para muitas pessoas uma surpresa enorme, também levou a que as pessoas reformulassem o seu pensamento em relação à realidade insular.

FN – Uma queixa que tem sido muito feita pelas entidades governamentais regionais é de que há divergências de tratamento por parte do Governo central em relação à Madeira, relativamente aos Açores.

CE – Acho que sim. Há evidências disso. Penso que a partir do momento em que houve identidade política entre o governo central e o governo dos Açores, houve algumas situações de nítida preferência, do ponto de vista financeiro, para financiar os Açores e não a Madeira.

FN – Mas também houve governos socialistas que foram bastante lenientes com a Madeira.

CE – Também, admito. Em alguns casos até foi mais fácil negociar com o governo socialista do que com o governo social-democrata.

FN – Sim, principalmente no caso do Passos Coelho…

CE – Você é que o disse (risos) Em que as chamadas eram ignoradas, os ofícios não eram respondidos, os emails era igual… Parecia que estávamos a bater numa parede.

FN – Parece que é o que se passa também hoje em dia. Outra pergunta: para alguém licenciado em Direito, e com pós-graduação em Administração Hospitalar, que teve a ver com os transportes, a saúde, a segurança social, a hotelaria, etc., o facto de ter sido a governante com a pasta da Cultura também foi interessante para si, de algum modo?

CE– A Cultura não é qualquer coisa que esteja isolada num quartinho. A vida das pessoas é toda ela feita de Cultura. Quando lemos um livro, ouvimos uma música, vemos um filme, apreciamos uma pintura ou escultura, tudo isso faz parte. A Cultura faz parte da nossa vida. Não é novidade para ninguém. Podemos é dar possibilidade a um número cada vez maior de pessoas de ter acesso a diferentes tipos de conhecimento. Cultura é o conhecimento da época, da estética, e isso é importante para todos nós, que temos um tipo de arte que é o seu, é pessoal. Para uns é o trabalho de moldagem próprio da escultura, para outros é a pintura, para outros a música, a dança, o teatro… O papel de um organismo público é facultar o conhecimento de tudo isto ao maior número possível de pessoas de uma comunidade, começando evidentemente pelas crianças.

FN – Mais uma vez foi uma situação que a pandemia colocou em evidência: o confinamento demonstrou que a vida dificilmente seria suportável sem a arte, sem um livro, uma música, um filme…

CE – Quanto mais cultas eram as pessoas, mais facilidade tiveram de se entreter. Toda a gente interagiu, através meios impensáveis até ao momento, mas não deixou de praticar e de cultivar o seu gosto pelas coisas que aprecia. Os museus também abriram as suas portas virtualmente, houve exposições próprias para a altura do confinamento… Houve uma coisa interessante que constatei enquanto estive na área da Cultura, no Governo: a quantidade de jovens que eu via a saber ler música, e tocar um instrumento musical nos últimos anos, em comparação com a minha infância, em que meia dúzia de meninos e meninas, mais ou menos privilegiados, iam aprender ou com professores privados ou na Academia de Música… Penso que poucas centenas seriam. Neste momento, são milhares. Quando se fala que não houve investimento na Cultura, olhe-se para aí. A quantidade de jovens que participam em coros, em bandas de música, em orquestras. Até a própria evolução que o Conservatório teve…

FN – Mas a Madeira, ao fim de tanto tempo desse investimento, continua a não ter uma sala de concertos como deve ser, e que era uma aspiração muito antiga.

CE – Já o vi nos concertos da Orquestra Clássica da Madeira. Qual é a percentagem de madeirenses que lá estão?

FN – São poucos. Mas isso de alguma forma contraria o que diz, não é? Formaram-se intérpretes, mas não se formou o público…

CE – É gradual. São processos que levam séculos… Não se pode pedir às pessoas que se auto-transformem assim. E há artes mais fáceis. A música clássica não é um processo fácil, num mundo de música pop. Mas também vi coisas engraçadas. Levando, por exemplo, centenas de idosos a assistir a um concerto de música clássica, é interessante observar como reagem. É preciso ouvir mais, de acordo. Mas isso também obriga a que haja meios para… Mas o percurso que foi feito, em 50 anos, é muito grande. Repare na quantidade de jovens raparigas que hoje participam nas bandas, por exemplo. Qual era a rapariga que, na minha infância, participava numa banda? O pai matava-a. E, quanto à Orquestra Clássica da Madeira, é desejável que cada vez mais haja espaço para instrumentistas madeirenses, ou pelo menos portugueses, sem desprimor nenhum, e até muita admiração, para aqueles que vieram de fora. Mas o objectivo deve ser criar massa crítica local.

FN – Uma última pergunta: ao fim deste percurso governativo, receber este reconhecimento é para si algo de significativo, de importante?

CE – Foi uma surpresa agradável. Toda a gente gosta de levar uma palmadinha nas costas. É sempre um sentimento agradável para quem o recebe. E é isso, não é nada de mais. A vida decorreu normalmente, fiz aquilo que achava que devia fazer. Não estava a pensar no que iria acontecer quatro ou cinco anos depois de deixar de trabalhar.