Faz-me falta…

Neste tempo de saudades que vivemos, digo, saudades de algumas rotinas benignas bem recentes, faz-nos sempre falta, no mínimo, alguma coisa que habitualmente fazíamos com gosto. A mim, artisticamente, faz-me falta os ensaios de mesa, onde podemos ver alegremente a “carinha laroca” de todos os fazedores do verdadeiro mistério teatral; os ensaios de leitura – mesmo com a engraçada gaguez de alguns; os momentos criativos e inesquecíveis do infindável universo da improvisação dramática. Faz-me falta também a minha indecisão na necessária distribuição das personagens – nestes momentos, entro mesmo no território do “não sei, talvez, pode ser”. Falho tantas vezes, tantas vezes mesmo, mas também acerto outras tantas. E isso é o que interessa, tentar, falhar, acertar, mas fazer.

Por gostar do fazer, faz-me falta correr, por vezes stressado, para os ensaios e deparar-me com o atraso de alguns atores, que me deixam os nervos em franja e os poucos cabelos que tenho, em pé.

Durante a período de ensaios de marcação cénica e ensaios corridos, faz-me falta sentir a construção das personagens a contribuir para a criação e decifração do código teatral do espetáculo.

Faz-me falta as hesitações, os erros, e acima de tudo, aquela preciosa liberdade artística de experimentar, experimentar e experimentar. O imaginar a partir do vazio. O construir durante dias a fio, o ambiente cenográfico, acompanhar as montagens e afinação de um desenho de luz. Surpreender-me com uma justa proposta de som para o fecho ou abertura de uma determinada cena.

Faz-me falta estar nos bastidores assistindo ao louco frenesim dos atores, uns que se maquilham à pressa, outros que aprumam um detalhe do figurino, outros que concertam um adereço, uns que riem, outros silenciosos, que nem piam, um ou outro que passa o texto – não vá a memoria o trair no derradeiro momento em frente do público. Uns agarrados ao telemóvel – sim, há atores que também são irresponsáveis.

Faz-me falta ouvir o burburinho do público a entrar para a plateia, e o som irritante de algumas solas de sapatos mais secas: “toc, toc, toc…”.  Qual cavalo, qual quê!? A verdade é que com o som de entrada do público, imaginamos logo se vamos ter ou não, uma boa casa.

Que saudades daquela união coletiva antes de cada espetáculo. Ali, por uns bons instantes, instala-se o silêncio, misturado com um nevoso miudinho.  Apertamos as mãos e passamos aquela energia positiva, que só nós – boa gente do teatro – sabemos dar valor. E à questão: Quem é que somos? Respondemos, intuitivamente: OFITE! Somos OFITE! – Oficina de Teatro do Estreito. Expiramos com força e inspiramos profundamente para gritarmos as derradeiras e inspiradoras palavras antes de pisarmos as tábuas do palco: Muita m****! Aí tenho a certeza que a consciência e responsabilidade da cada um, virá mesmo ao de cima.

Faz-me falta o suspense das pancadas de Molière e a magia da cortina de boca de cena abrindo-se orgulhosamente para o mistério.

Durante o espetáculo, faz-me falta, ver a impressionante capacidade de improvisação de um ator perante a temível “branca”.

Faz-me falta os comentários no fim dos espetáculos. Uns a favor e outros contra. E ainda outros, entusiasmadíssimos, dando até novas ideias para futuros espetáculos. Faz-nos falta o público. A relação direta com os espetadores. O riso sentido dos que assistem, a saudação final e os aplausos.

Faz-me falta usufruir desse bem artístico e da experiência estética que só o teatro permite. Por esta razão é que me custa tanto viver somente com os “teleoutros”, pois faz-me tanta falta não viver, presencialmente, com os outros. Os outros que são os atores, os técnicos, os artistas, o público e todos aqueles com quem aprendemos a amar mais plenamente a arte dos palcos.

Faz-me falta o teatro e comunidade que contribui para a criação de espaços de responsabilidade coletiva e de participação cívica e artística.

Claro que depois de sair do teatro, também me faz falta as longas conversas com amigos, controladamente, bem acompanhadas com um suminho de laranja, limão, mel e água para o dente.