Pedro

Conheço-o desde os tempos do Liceu. Mais ou menos.

O cabelo com corte à tigela era a loucura dos anos 90, o que dificultava a árdua tarefa de distinguir adolescentes.

Eram os três muito parecidos, com o mesmo malfadado corte. Durante algum tempo pensei que eram a mesma pessoa. Só por não acreditar no dom da ubiquidade conclui que eram pessoas diferentes.

Um deles entrou de rompante, anos depois, no meu carro à porta da faculdade. Porque tínhamos uma amiga em comum, não porque fosse um assaltante. Veio a ser o meu melhor amigo.

O outro até hoje não sei quem é. Só me lembro que usava um grosso colar de ouro. Pois.

O terceiro adolescente moreno, de cara arredondada e de tigela na cabeça era ele. O Pedro.

Encontrei-o no metro em Lisboa, quando lá estudávamos. Ele vinha do Técnico, das aulas duma engenharia qualquer, acho eu. Eu deveria estar a caminho do Colombo. Claro. Falámos daquela forma que falamos com qualquer madeirense com quem nos cruzamos quando estamos fora. Com cheiro a casa e som de mar.

Mas não foi só isso. Não me lembro de quase nada do ele que disse. Qualquer coisa de música. Mas não me esqueço como o disse. Falou muito e muito rápido, o que poderia ser desastroso. Mas não. Falou com energia, com garra e paixão. Com uma paixão crua. Nem sabia que se podia ser assim aos 19 anos. Porque assim é o Pedro.

Anos mais tarde, volto a encontrá-lo e lá voltou o tema da música. Compunha umas coisas, dizia ele. Porque assim é o Pedro.

Li uma notícia qualquer sobre ele. E depois outra. E mais outra.

Fazia músicas para videojogos. Engraçadito, pensei eu. Foi preciso que me explicassem que o mercado dos melhores videojogos, como aqueles para os quais trabalhou, era o mercado de grandes compositores da atualidade. Ah. Nunca sequer me tinha apercebido que os jogos tinham música. E para quem os videojogos se resumiam à Lara Croft – que, sabe-se lá porquê, só me apetecia jogar em épocas de exames – foi um choque.

E depois leio que compôs um Requiem a Inês de Castro. Como assim? Depois de googlar o que raio era um Requiem, dei por mim a fazer um balanço. Enquanto andava em modo neurótica nos preparativos do casamento, auxiliada pelo meu padrinho, o outro adolescente de corte à tigela, o Pedro escrevia 41 minutos de música. Apresentada pela Orquestra Clássica do Centro. Pois.

Então percebi que não, ele não compunha umas coisas, como dizia. Não ficava na garagem a dedilhar uns acordes estranhamente semelhantes a uma música conhecida para depois dizer que é dele. Enquanto comia batata frita, numa existência algures entre o nerd e o totó. Não, ele compõe. Mesmo.

Quiseram os deuses da fertilidade que frequentássemos ao mesmo tempo o curso de preparação aquática para o parto. Ele e a Sofia iam ter um menino. Nós uma menina.

Perguntei-lhe pelo Requiem, sempre sem transparecer que tive de ir pesquisar o que era. Que tinha sido um projeto muito interessante, ambicioso, onde tinha posto muito de si. Que estava infinitamente honrado pelo convite e que tinha resultado muito bem, porque os intérpretes eram fabulosos. O mérito sempre a dividir pelos outros. Porque assim é o Pedro.

Vamo-nos cruzando nos parques infantis ou nas festas dos amigos em comum dos nossos filhos. Da última vez, algures no ano passado, falámos durante 10 minutos, constantemente interrompidos por chamadas de atenção da minha filha ou por um papá, vem brincar do filho dele. Mas a conversa valeu por muitas conversas. Porque assim é o Pedro.

Falámos sobre fazer 40 anos, de planos de vida, da minha recente veia política e do seu sonho. A tal sala de espetáculos na Madeira. Para levar a música a outro nível na Madeira. E falou dela com a mesma paixão como a do metro há tantos anos. Com paixão crua. Só que agora eu sabia que se pode ser assim aos 39 anos.

Um projeto ambicioso e necessário, que já foi pensado e estudado ao pormenor. Estudos financiados por ele. Porque assim é o Pedro.

E agora ainda me vem com este Te Deum. O arrepiante Te Deum. Valha-nos Deus.

Acho que ele nem se apercebe quão transcendente é isto para uma pessoa que teve dois anos de piano e não conseguiu aprendeu a tocar o Parabéns inteiro. E mesmo para as que sabem tocar o Parabéns. Com as duas mãos.

Não se deixem enganar pela sua humildade – que é da genuína, não da falsa. Ele é um dos grandes. Felizmente é valorizado e acarinhado pelos seus pares, pela sociedade e pela DRAC. E isso é maravilhoso. É boa pessoa e sempre disponível para o outro. Fala com voz pequena dos seus hercúleos feitos e com voz grande dos nossos. Os pequenos. E genial na sua arte. Assim é o Pedro Macedo Camacho.

Do que sei dele, sei que se vai sentir embaraçado por isto. Por isso, faço figas para que ele não leia.

Mas se, por acaso, estás a ler, Pedro, este texto não é sobre ti, não te preocupes. É sobre o outro com o corte de cabelo à tigela. O da corrente de ouro. Pois.