Antes do que somos

Em termos históricos as nossas origens mais remotas levam-nos até épocas cujos resquícios hoje  visíveis, nos fazem pensar sobre os orgulhos apregoados do que somos. O que somos, só poderemos afirmá-lo a partir da data em que nos conhecemos: Através de documentos vários, em arquivos cuidadosamente conservados, monumentos  recuperados de entre ruínas e subterrâneos, desde a mais alta muralha até à mais pequena moeda ou artefacto  encontrados nas escavações das cidades, ou nas fundações de um qualquer edifício em construção. É de salientar, a este propósito, uma capela paleocristã descoberta em Mértola, durante o lançamento dos alicerces de um prédio por volta de 2013. Um achado precioso e inesperado que fez parte duma antiga basílica, agora constituída Museu.

Mas hoje, é por Toledo que me deixo seduzir. Por essa vetusta e atraente cidade imperial, com inspiradoras ruas estreitas, majestosas pontes sobre o Tejo, pela cor rósea das fachadas monumentais, marcadas por arcos em ferradura e ornatos mudéjar, memórias repartidas por tempos distantes, onde visigodos, romanos judeus e árabes fizeram sua morada e edificaram seus tributos às altas instâncias do espírito. Pode um Cristo preso a uma cruz  erguer-se sob os arcos duma mesquita, como pode Santa Maria dar o nome a uma magnífica sinagoga. A história da miscigenação dos povos  é uma matéria apaixonante que, de imediato, dilui as pequenas visões sobre quem é quem, onde acabam os romanos e começam os visigodos, ou onde se extinguem os visigodos e dominam os árabes. Muitos séculos passam sobre a história para que se definam os impérios. E aqui, em Toledo, é, precisamente, o testemunho dessa coexistência que a torna, toda ela, no grande monumento histórico que se impõe sobre esta colina majestosa.

Se recuarmos à data de 500 dC e olharmos para o mapa que representa a parte ocidental do território ao norte do Mediterrâneo, hoje Europa,  vemos marcada uma extensa zona que ocupa  grande parte da França, a Espanha e o sul de Portugal. Esta grande mancha territorial ostenta a designação de Reino Visigótico. Esta época salientou-se por numerosas batalhas entre os vários ocupantes, Suevos na zona da Galiza, Francos, na Zona da Gália e os Burgúndios, na Borgonha. Enfraquecido o reino Visigótico por estas sucessivas guerras, Justiniano  que detinha o Império Bizantino, deslocou exércitos para ocidente e formou a província imperial da Hispânia.

Por fim, em 586, Recaredo I, depois de consolidado o poder Visigótico por seu pai,o rei Leovegildo, converteu-se ao cristianismo e estabeleceu em Toledo a capital do reino. Preciso de salientar a mudança das leis operadas por Recaredo, cujo nome constitui a toponímia duma das principais avenidas de acesso ao centro desta cidade.  Baseando-se no direito romano, as novas leis substituíram os códigos do passado gótico, concedendo aos duques e condes, amplas responsabilidades fora dos seus deveres civis e militares, e os servos e escravos do rei tornaram-se importantes burocratas e administrativos. Foram atribuídos importantes direitos às mulheres que poderiam herdar terras e títulos, e administrá-los independentemente dos homens, maridos ou parentes, dispor das propriedades em testamento, representar-se e testemunhar em tribunal e decidir e organizar os seus próprios casamentos a partir dos 20 anos.

A cultura visigótica salientou-se por um alto estatuto, a contrariar  a memória que o vulgo atribui à existência deste povo. As primeiras cidades construídas na Europa após a queda do Império Romano devem-se aos visigodos, cujo legado, para além do seu código de leis, se revela em nomes próprios e apelidos, numerosos achados arqueológicos em Portugal e Espanha e nas várias igrejas ainda existentes.

Volto a Toledo para referir a preciosa  igreja de S. Román, Museu dos Concílios e da Cultura Visigótica, que mantém em integridade assinalável, a sua beleza original.  Os arcos em ferradura, mais tarde adoptados pelos árabes, sobre colunas com capitéis de ornatos fitomórficos, e os frescos de características «bizantinas», ainda intactos, que revestem as paredes e os mesmos arcos, criam um ambiente cálido e envolvente. Na sua totalidade o espólio deste museu constitui valiosa informação sobre a história visigótica na península Hispânica.

Portugal, ao ter sido um prolongamento deste antigo reino, guarda, entre as  memórias da época paleocristã, a Igreja de S. Gião, do séc,VII, na Nazaré, a ser recuperada, e a capela de S. Frutuoso, conhecida também por capela de S. Salvador de Montélios, datada do mesmo século, em Braga. A sul, onde a presença visigótica foi mais notória, salienta-se o núcleo notável que já referi de início e consta de uma basílica e um cemitério, no Museu do Rossio do Carmo, em Mértola, onde é possível observar uma rara colecção de lápides e estelas funerárias com inscrições em alfabeto visigótico.

Termino aqui esta digressão pela nossa ancestralidade e lembro que, antecipando o que agora somos, nomes nossos, como Antónia, Amanda ou Fortunato foram já encontrados em inscrições paleocristãs nos distantes seculos VI e VII.