Sonhos de Grandeza

“Um homem sem ética é uma besta selvagem à solta neste mundo”

Albert Camus

(Tentativa de ensaio sobre a Democracia)

Um dos recentes editoriais (nº198 jul/ag 2019) da revista francesa “Sciences et avenir” intitula-se “Sonhos de grandeza” e aborda a construção de património arquitectónico. Referindo que, desde há 5000 anos, os homens procuram imprimir a sua marca na paisagem, Vincent Rea recorda que “os edifícios monumentais revelam marcas de civilização e de humanidade” sublinhando a sua dimensão do sagrado: os monumentos “ligam-nos às gerações anteriores, mantêm-nos juntos”. Na política, como na arquitectura, o exercício do serviço público de cidadania através dos órgãos de poder, configura uma demanda pela pegada, pelo legado aos seguintes, pelo vínculo com os anteriores. Num outro artigo, inserto no mesmo número da revista, Sophie Creusillet refere que a concepção de património, segundo os japoneses, “funda-se sobre a transmissão da memória dos gestos e das técnicas, privilegiando o trabalho do artesão em detrimento do monumento”. Na política, como na arquitectura, a construção de utopias, visa arrancar as comunidades à sua marginalidade num desígnio comum que se confunde com a paz e o progresso, com o passado, mas – mais importante – com a edificação de futuros (novos) legados.

Não é diferente a casa da Democracia. Os percursos dos regimes democráticos são feitos de construção e de ruptura. São traçados em função de dolorosas conquistas e de penosas derrotas. As Democracias, regimes segundo os quais o povo deveria governar através dos seus representantes, parecem – em todas as suas manifestações e realizações –  viver momentos de questionamento (até de desmoronamento). Nos regimes democráticos, os partidos deveriam constituir-se enquanto garantes da pluralidade de sensibilidades/ideologias, modos de idealizar e viver as sociedades. No entanto, revelam-se, de forma preocupante, lugares de acolhimento a formas de caciquismo, nada compatíveis com a sua origem primeira. Em consequência, emanam para a sociedade onde intervêm, formas enviesadas da própria natureza da democracia e que a desvirtuam, desse modo contribuindo para a sua crescente fragilização. Este processo, acompanhado por uma captura da política pelos interesses económicos, não raras vezes entidades “ocultas”, sediadas em países cujos regimes, por sua vez, são opostos à democracia, adensa-se a par do dano causado às instituições, “aprisiona” os políticos através de teias de dependência e de corrupção, logo de difícil detecção por esses mesmos regimes democráticos cujos fundamentos não estão devidamente acautelados.

São fracos, pois, os pilares que amparam, actualmente, os regimes democráticos cujos edifícios revelam cada vez maior dificuldade em manter-se face aos terramotos da corrupção que os minam e corroem.

As eleições portuguesas, refiro-me sobretudo às legislativas, foram muito elucidativas quanto aos movimentos sociais, à permeabilidade relativa às notícias falsas e, lamentavelmente, à ausência de conhecimento dos programas/propostas partidários/as. Não deixa de ser caricata, a entrevista, que circula em podcast nas redes sociais, a uma candidata, eleita pelo PAN, que revela desconhecer não só o programa do partido pelo qual se elege, mas assuntos que deveria, no mínimo exigível, conhecer. Por outro lado, a porosidade quanto aos populismos, de direita e de esquerda, parece não ter fim. Isto, a par de uma onda de “análises políticas” feitas de chavões, qual deles o mais populista, de modo a que a educação cívico-política seja cada vez mais pobre.

Há muitos anos que se clama pela qualidade dos políticos, por seres humanos que se dediquem, eticamente, ao serviço público que toda a actividade da pólis deveria configurar. As campanhas eleitorais, os debates prévios às eleições e as subsequentes análises, deixam um legado de carência de conteúdo e de propostas que contribuam para esse desígnio. As campanhas são agora elaboradas por agencias de comunicação, aptas a emitir os “soundbites” (chavões, palavras ou frases de fácil efeito reprodutivo), colocando “trolls” (agentes de ataque) nas redes sociais para, com facilidade, eliminar a crítica, ofendendo e apoucando. Este modus operandi não deixa de configurar uma eficaz, se bem que velada, forma de censura e de disseminação do que se considera “politicamente correcto”. Os media veiculam “a voz dos donos”, meios muito persuasivos e eficazes no sentido de manipular e condicionar a opinião.

Regista-se, em Portugal, uma preocupante sucessão de casos de grave dano ao Estado, em consequência de actos irresponsáveis, eventualmente corruptos, que perturbam não só a necessária credibilidade dos implicados, como fazem ruir os pilares fundamentais do Estado de Direito, da Democracia e, naturalmente, dos cidadãos. São conhecidos casos de corrupção em todos os governos, mas apenas alguns (poucos) condenados. Maus indícios. Apesar disso, não é democraticamente saudável ou sequer revelador de maturidade política e institucional, pretender “aligeirar”, ou até desculpar, condutas politicamente reprováveis só porque “outros o fizeram”. Essa tentativa de infantilização do discurso político, que não deixa de ser populista, parece visar uma certa validação do acto político criminoso através de uma qualquer “jurisprudência” da aceitação pública desse mesmo crime. Só isso – e se fosse apenas isso – bastaria para aferir o grau de perigo pelo qual passa a Democracia, em Portugal. Refiro, ainda, a título de exemplo, Tancos. Estão em causa valores, ética, defesa do Estado de Direito e salvaguarda da Constituição. Está em causa a soberania do país, a pouca que resta. A apropriação dos órgãos de Estado, civis e militares, por indivíduos que jogam a nação, qual baralho de cartas num perigoso poker, é o sinal último de falência do edifício democrático a que o Presidente da República deveria acorrer de modo a assegurar, junto dos cidadãos, de forma mais clara e assertiva, que o Estado está acautelado. “Tancos” atinge as fundações da Democracia no sentido em que a vulnerabilidade a que a segurança do Estado foi/está exposta assim o demonstra e contribui para acentuar da falta de confiança dos cidadãos nos órgãos de soberania do Estado.

Segundo Thompson (2005) “a corrupção individual remete para um ganho pessoal, por parte de um agente público, em troca de favores”. De acordo com o mesmo autor, a “corrupção institucional refere-se a um ganho político que tende geralmente a promover a satisfação de interesses privados”. Mais do que tratar-se de acções individuais, “é uma perturbação do sistema político que acaba por já não servir o bem comum” (Nadeau, 2013). Dados recolhidos pela reputada organização “Transparancy Internacional”, indicam que Portugal tem um score de 64, em 100, zona laranja, dos países mais corruptos. O país é referido, num recente relatório do Conselho da Europa, como um dos países europeus que menos investe no combate contra a corrupção. Portugal é, aliás, o país que menos cumpre as recomendações contra a corrupção emanadas desse mesmo Conselho. Este relatório, publicado no passado mês de Junho, garante que, no final de 2018, faltavam cumprir 73% dessas recomendações. A situação agrava-se quando, nesse documento, é revelado um “ranking” desolador colocando Portugal atrás da Turquia (70%), Sérvia (59%), Roménia (44%), Bélgica (42%) e Croácia (39%). Como se não pudesse ficar pior, o citado relatório deixa claro que, ao contrário de outros 13 países, Portugal não ratificou, ainda, a Convenção sobre Corrupção e Lei criminal, instrumento fundamental para tornar mais eficaz o combate a este gravíssimo crime.

Na política, como na arquitectura, o monumento da Democracia deve transmitir a memória dos gestos e das decisões políticas fundadas na Ética e no respeito pelas regras do Estado de Direito. Os artesãos da política devem ser capazes de legar às gerações vindouras um conjunto de “boas práticas” no que ao desempenho do poder diz respeito, de modo a exercer a função antropológica de cedência de um património gerador de paz, progresso e equidade.

Entretanto, e quando escrevo, o Comité do Prémio Nobel acaba de anunciar o Prémio Nobel da Paz 2019 – Abiy Ahmed Ali, sobretudo pelos seus esforços no sentido de “atingir a paz e a cooperação internacional” em especial o de encontrar uma solução pacífica para o conflito com a sua vizinha Eritreia. No anúncio do Comité Nobel pode ler-se: “A Paz não deriva de acções unilaterais”. “Quando o primeiro-ministro Ali tomou posse, iniciou um processo no sentido de dar aos seus concidadãos esperança num futuro melhor, levantando o estado de emergência, concedendo amnistia aos presos políticos, descontinuando a censura aos media, legalizando grupos opositores e demitindo militares e civis suspeitos de corrupção. Concedeu crescente influencia política e comunitária às mulheres, reforçando a democracia através de eleições livres e justas”.

Este anúncio, ao qual Ali respondeu, tão sabiamente afirmando “Este é um prémio para África”, dirige a atenção internacional para o continente martirizado e tão maltratado pela comunidade internacional, em geral. Dirige, ainda, a atenção para as ditaduras ainda vigentes, em África, opressoras dos povos e das liberdades, vítimas de novos (velhos) colonialismos que retiram as riquezas dos povos para alimentar exércitos de mercenários e as elites dominantes em países onde a Democracia não chegou. A atribuição deste prémio concede esperança a milhões de crianças e adultos, esses sim, a quem os sonhos de uma vida mais justa, pareciam mesmo “roubados”.

Assim homenageio, também, Manuela Silva, economista recém-falecida, para quem a pobreza representava ( o que é verdade) uma “violação dos direitos humanos”.

Na política, como na arquitectura, alguns “sonhos de grandeza” são-no, ainda, pela simples e nobre razão do bem-estar e do respeito pelos povos. Também é gratificante sentir e viver este tempo, o tempo de afirmação dos verdadeiros empreendedores pela paz e pelo progresso da Humanidade.