Respeitar a História

 

Numa época em que se comemoram os 600 anos do Porto Santo e da Madeira, há uma tendência para se falar mais, e também escrever, nos media sobre a História destas ilhas. Surgem ainda indivíduos ou organizações, que se socorrem da História para a realização de projectos artísticos e espectáculos. Tudo isto deveria, em princípio, ser pedagogicamente vantajoso para a cidadania, em especial, para a promoção da identidade cultural e da educação com base na consciência do passado histórico.

Infelizmente, por falta de conhecimentos ou de uma assessoria científica, algumas boas ideias degeneram em falsificações da História.

É certo que, em muitos assuntos, a História não apresenta certezas. Contudo, há matérias onde a especulação não tem lugar ou, pelo menos, está limitada. A historiografia vai, nalguns campos, cimentando conclusões, consensualmente tidas como certas.

O grande equívoco é muitos se armarem em historiadores sem a necessária formação ou sem nunca se terem dedicado ao estudo e à investigação da História. Ainda no passado mês de Fevereiro, ouvi uma senhora deputada afirmar, na RTP-Madeira, que fulano tal era, sem dúvida, uma «individualidade de reconhecido mérito nacional e internacional, no âmbito histórico ou cultural» por ter sido vice-presidente de um determinado órgão de soberania. Como se a carreira política conferisse a alguém tais competências e méritos! Assim sendo, estamos conversados. Adiante.

A História não se assemelha a um terreno baldio, onde alguns se dão ao desplante de entrar e defecar. Entre amigos e conhecidos, é mais ou menos aceitável todos opinarem sobre tudo. Já publicamente, a postura deveria ser diferente: que cada um fale do que sabe.

Seria fastidioso enumerar aqui os muitos lapsos destas comemorações dos 600 anos, mas, para memória futura e para que não se diga que falo sem fundamento, ficam aqui alguns.

No dia 2 de Julho de 2015, foi inaugurada uma escultura da autoria de Luís Paixão, promovida pela Câmara Municipal e executada com o apoio de uma cadeia de supermercados, como forma de assinalar o desembarque dos portugueses na baía de Machico. A escultura pretende representar um navegador a colocar um padrão na terra descoberta e intitula-se «Na rosa dos ventos: Machico à proa».

O escultor optou por uma representação realista, com nítida influência da gravura do «Padrão erguido pelos portugueses na foz do rio Zaire», publicada in Quadros da História de Portugal, obra coordenada por Chagas Franco e João Soares, com ilustrações de Roque Gameiro e Alberto de Sousa (Lisboa, 1917).

Não cabe aqui analisar a incrível posição anatómica do navegador, nem sequer as suas estranhas feições ou tão-pouco o traço das mãos. Atente-se, porém, no padrão. Teria sido firmado um padrão em Machico por Tristão ou algum dos seus companheiros de viagem? Elegendo um modelo realista, teria o escultor procurado informação sobre esse pormenor, com elevado relevo na sua obra? O texto, que acompanha a ilustração de Roque Gameiro – fonte provável da sua inspiração –, poderia fornecer-lhe imprescindível esclarecimento.

Na verdade, o assentamento de padrões em pedra, como forma de assinalar a prioridade dos descobrimentos portugueses, iniciou-se com Diogo Cão, na margem sul da foz do Zaire (Padrão de São Jorge), em 1482, por ordem do rei D. João II.

Só na imaginação de Luís Paixão há lugar para um padrão em Machico. Para a História, é uma fantasia do escultor que, no contexto da obra em apreço, constitui um anacronismo. Quando Zarco e Tristão ali desembarcaram, não transportavam padrões.

O Governo Regional criou «uma estrutura temporária designada por Estrutura de Missão para as Comemorações dos 600 anos do descobrimento da Madeira e Porto Santo, com o desígnio de planificar, organizar e monitorizar os eventos comemorativos dos 600 anos do descobrimento da Madeira e Porto Santo» (Resolução n.º 243/2017, JORAM, n.º 71, I Série, de 18 de Abril de 2017).

Esta deliberação governamental é uma malformação congénita. Se quem a redigiu e subscreveu soubesse um pouco de História teria escrito Estrutura de Missão para as Comemorações dos 600 anos do descobrimento do Porto Santo e da Madeira.

No dia de Todos os Santos do ano passado, houve um arraial temporão no Porto Santo à conta do sexto centenário do descobrimento da ilha. Para a festa de Todos os Santos de 2018, a Comissão Executiva das Comemorações tomou como verdadeira uma afirmação absolutamente errada de Cadamosto. Este navegador veneziano escreveu, em 1455, que o dito descobrimento ocorreu no dia 1 de Novembro de 1428 e que, por ser dia de Todos os Santos, chamaram a esta ilha Porto Santo. Ora o topónimo Porto Santo existe, pelo menos, desde os anos 70 do século XIV, isto é cerca de 50 anos antes da chegada dos portugueses. Por outro lado, em 1420 já Bartolomeu Perestrelo tinha iniciado o povoamento da ilha. Ademais, se a dita Comissão valoriza tanto as afirmações de Cadamosto, então deveria celebrar os 600 anos no 1.º de Novembro de 2028 e não em 2018. Incongruências de quem não tem respeito pela História! Para cúmulo desta falta de bom senso, impuseram a  esta ilha uma velha estátua do Infante sobre uma palete, a poluir a alameda com bafos saudosistas de representações artísticas colonialistas.

Espero que, no corrente ano, os porto-santenses celebrem, tranquilamente, o dia de Todos os Santos ou do Pão por Deus e, para sempre, nesta data, se esqueçam do descobrimento, em nome da sua História e, em especial, da sua dignidade. Errar é humano, mas perseverar no erro é diabólico – bem se aplica neste caso o conhecido adágio, que radica num sermão de Santo Agostinho.

Em comemorações de efemérides surgem sempre recriações de História ao vivo. A dramatização de um acontecimento histórico deve ser uma encenação com a proximidade possível da realidade passada. Impõe-se, por conseguinte, trabalho de investigação e precisão histórica. No entanto, dois projectos desta natureza, realizados no âmbito dos 600 anos, revelaram falta de rigor científico sobre os acontecimentos representados.

No Festival Colombo do Porto Santo do ano passado, uma recriação histórica, executada pela Viv’Arte – Laboratório Nacional de Recriação Histórica e adjudicada pela Secretaria Regional do Turismo e Cultura por 68 000 euros, inventou o casamento de Cristóvão Colombo e Filipa Moniz na praia, celebrado por um bispo, e fez desfilar freiras pelas ruas da cidade. Duas, entre outras, cenas anacrónicas e ridículas. No século XV, a Igreja não permitia casamentos fora de igrejas, capelas ou oratórios. Quando Colombo casou, ainda não tinha sido criada a diocese do Funchal. As freiras viviam em clausura. No Porto Santo não havia conventos! Por fim, mais provável é Colombo ter casado em Lisboa.

Recentemente, na Festa da Flor surgiu a baía dos bomboteiros. A ideia foi interessante e o cenário bem conseguido, no contexto do evento. Contudo, a representação dramática destoava. O guião não se adequava à realidade representada. Um bomboteiro não falava como um «vilão». Os rapazes da mergulhança nada tinham a ver com aqueles «actores». Faltou rigor. Bastava ler alguns estudos sobre esta actividade e o texto seria outro. Para começar, aconselharia a leitura de Elisabeth Pestana, Subsídios para o estudo da linguagem dos bomboteiros (Funchal).

Fico-me por aqui, não por se terem esgotado os exemplos, mas porque o texto vai já longo.

Resta-me a convicção de que estas e outras trapalhadas retiram crédito às comemorações, que deveriam ser encaradas com seriedade e respeito pela História. Também, neste âmbito, se pode aplicar aquele provérbio romano com mais de 2000 anos: À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta.