A Europa desencantada -recordar Eduardo Lourenço em tempo de eleições europeias

Europa desencantada para salvaguardar o futuro de um sonho europeu que sinto mais imperativo do que nunca sem esquecer a melancolia presente que o envolve”

Eduardo Lourenço, in Europa desencantada, 1993

No próximo dia 26 de Maio, em Portugal, os cidadãos maiores de 18 anos estão convocados para exercer o seu direito/dever de cidadania, traduzido no voto, no sentido de escolher a próxima composição político-partidária do Parlamento europeu.

Uma muitíssimo debatida e comentada recente sondagem do Euro-barómetro (http://www.europarl.europa.eu/at-your-service/pt/be-heard/eurobarometer/closer-to-the-citizens-closer-to-the-ballot) colocou em evidência o trágico fatum destas eleições ao parecer negar uma representatividade democrática válida aos próximos eleitos. Independentemente das normas que tornam possível/aceitável que uma eleição seja considerada juridicamente válida com um resultado de menos de 49% por cento dos votos, a verdade é que essa mesma representatividade é seriamente abalada e, descendo a um nível abaixo dos 35%, o resultado é grave parecendo comprometer, até, o próprio futuro da União enquanto tal. Assim sendo, têm sido desenvolvidas as mais diversas iniciativas com o objectivo de, sobretudo entre o público dos 18 aos 30 anos, desencadear o movimento em direcção ao voto.

Desta sondagem retenho os valores que eram já preocupantes nas eleições anteriores e que, supostamente, tiveram preponderância na escolha da via Brexit. Esses dados reportam-se ao desinteresse/abstenção manifestado pela faixa etária acima referida. No âmbito dos encontros/debates a que tenho assistido, tem sido insistente a referência ao facto desses jovens valorizarem a UE numa dimensão que decorre, principalmente, da mais-valia que representa o Programa de mobilidade europeia Erasmus+. São muitos os méritos das viagens, dos novos amigos, do simples facto de experimentar o mundo. Outras medidas como o “fim das fronteiras” e do roaming, o benefício das novas infra-estruturas e o processo de Bolonha são, igualmente mencionadas. Então, o que justifica que uma geração tão beneficiada por essas mesmas dimensões, a designada “Geração Erasmus”, não corresponda com o seu contraponto cívico do voto? O que subjaz a este paradoxal hiato? Poderíamos alegar, em defesa de um qualquer contraditório, a distância entre os usuários do referido programa e o erudito que lhe concedeu o nome, Erasmus de Roterdão, mas talvez se tratasse de um exagero, injusto para tantos. No entanto, não podemos deixar de, relevando o valor da viagem (uma experiência sempre rica em todos os sentidos) questionar acerca do manancial de conhecimento proporcionado pela mesma e de contributo, consubstanciado, para os princípios e valores que fundaram e vigoram na Europa, enquanto União. Será que ao utilitário à disposição, é – efectivamente – associado um valor ético de defesa e disseminação do ideário europeu? A dúvida existe apenas e pela confirmação do desinteresse e da abstenção.

Falemos, então, de Democracia e dos principais valores que instituem cada estado-membro da UE enquanto Estado de Direito: a dignidade humana, a liberdade, a igualdade e a solidariedade. Será que este conjunto de valores ultrapassa os do papel necessário para ver aprovada cada candidatura aos programas europeus? A verdade é que estes, que deveriam ser valores inegociáveis e dos quais a União não deveria jamais abdicar, parecem derrotados quando submetidos ao duro teste da complacência diante da sua permanente violação.

Se estivermos atentos ao teor das “propostas” que chegam aos cidadãos, quase nos esquecemos de que a campanha é para as Europeias. Autárquicas? Legislativas? Clube de recreio do bairro? Enfim, qualquer outra coisa pode ser desde que não sejam debatidos os problemas reais que enfrenta, e recordo a expressão de E. Lourenço, esta “Europa agonizante”. Propostas inadequadas, ideias fracas de forma e de conteúdo, apresentadas como se fossem a “promoção da banana”, não deixam antever uma mobilização real e civicamente empenhada no voto. A mensagem surge impregnada de activos tóxicos que iludem a natureza mesma da democracia representativa.

Os valores que subjazem à formação da União europeia, como garante de progresso e de paz, têm sido severamente abalados por populismos (de direita e de esquerda) e, também, pelo facto inusitado da organização acolher, no seu seio, o que designo como “eurodestruidores”, isto é, deputados que representam partidos cuja proposta e razão de ser é a destruição da própria União. Isto, por si só, constitui uma abjecção que mereceria uma imediata acção por parte das instituições. É que, deste modo, se acentua uma autofagia autorizada e consentida que é, a todos os títulos, inaceitável e incompreensível.

Dos novos e dos antigos aliados, a China é, actualmente, um dos mais poderosos investidores na UE (Portugal um dos mais sustentados exemplos) o que não é suficiente para apagar Tian- an-men, a prisão, tortura e morte do Prémio Nobel da Paz, Liu Xiabo, pelo simples facto de ter ousado reivindicar um regime democrático para a China. Não apaga, enfim, tudo o que, na China, representa uma longa lista de violação dos princípios que subjazem à UE. Os Estados Unidos da América, com a eleição de Trump,  passaram de mais antigo aliado da UE a seu mais recente crítico e antagonista conduzindo ao questionamento e desvalorização, por parte daqueles, do eixo euro-atlântico.

Está só, o velho continente, cansado, vilipendiado no seu seio, ameaçado pelos antigos aliados e a tentar resistir a factores de entropia cujo controle parece ter perdido. O seu mais perfeito pilar, o da democracia, desmorona-se a cada dia, num processo de questionamento e de autodestruição, e reitero, pela complacência da própria União quanto aos que, servindo-se das suas múltiplas e reconhecidas virtudes, não hesitam em contribuir para o seu fim.

Vivemos tempos que se designam como pós-democráticos, de fraca legitimidade, parecendo validar os novos autores das escolhas políticas: grandes instâncias supranacionais, como a própria UE, aliás. A ideia de uma governança global protagonizada pelas designadas elites transnacionais torna a tomada de decisão opaca ao cidadão. A complexificação dos processos com uma autêntica “comitologia” dominante, a linguagem propositadamente hermética de muitos dos diplomas e orientações, contribuem, igualmente, para que o novo normal seja a abstenção. De cidadão convictamente activo e participante – através do voto – nos processos de decisão, os regimes ditos pós-democráticos instituíram cidadãos-espectadores-passivos do modo como o mundo se organiza e evolui. Aqui reside o fenómeno primeiro de distanciação entre eleitores e eleitos que determina o evitamento do direito/dever cívico de votar, o chamado “voto de protesto”.

Creio que não ajuda a valorização de uma proposta utilitarista da vida e das instituições o que contribuiria, ainda mais, para um clima de desconfiança activa nas mesmas e nos aspirantes a seus representantes, assim como a um consequente crescimento das taxas de desinteresse que se traduzem em abstenção.

A esta dimensão da pós-democracia, está associada a transformação das democracias liberais no que se convencionou designar como “democracias iliberais”, conceito que o Instituto Jacques Delors (Fevereiro 2019) descreve como “autoritarismo maioritário” e que, em última análise, garante a tomada de decisão, validada em urnas, mas nociva ao interesse das populações.

Recentemente (Fevereiro 2019), na delegação da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris e em cooperação com a Fundação Jacques Delors, era debatido o futuro democrático da Europa tendo em conta as ingerências e os processos de desinformação cuja via franca é a Internet. As chamadas “propagandas digitais” ultrapassaram a já desusada contratação de trolls. Hoje em dia, representam autênticos centros de pressão e de influência, criados e geridos de forma altamente profissionalizada e tecnologicamente muito avançada, capaz de fazer parecer qualquer democracia o seu exacto contrário “castelo de cartas”. Perguntava-se, nessa conferência, se a segurança, a integridade e a legitimidade das próximas eleições europeias estariam asseguradas. Como podemos ter essa certeza?

Os mais reputados think tanks têm dedicado suficiente literatura relativa às novas dinâmicas que podem resultar destas eleições, nomeadamente o fim da hegemonia das duas principais famílias políticas. Num artigo de Jamila Aanzi (Dezembro 2018) “Europe matters, but how do we tell young people that”, a autora relembra a necessidade de adequar a linguagem ao público-alvo definido, sugerindo que se utilize o princípio “KISS – keep it short and simple”. Este princípio não deve, no entanto, “plastificar” a mensagem tornando-a tão simples que possa perder a razão de ser e o objectivo a cumprir. O trabalho desenvolvido pelo Parlamento europeu junto dos eleitores em geral e dos mais novos, em particular, através da campanha #destavezeuvoto, é de extrema relevância. Seria desejável que um programa de fundo destinado à formação cívica dos jovens europeus, no sentido da sua literacia política, fosse implementado.

Celebra-se, esta quinta-feira, dia nove, o Dia da Europa. Múltiplas iniciativas louvarão este continente unido na paz há mais de setenta anos. Serão, igualmente, numerosos os apelos ao voto nas próximas eleições. Soará o “Hino da Alegria” que Beethoven nos legou na “5ª Sinfonia”. Apesar de, segundo a União Europeia, “O hino, não ter letra e utilizar a linguagem universal da música para exaltar os ideais europeus da liberdade, paz e solidariedade”, o poema de Schiller “Ode à alegria” relembra-nos o abraço universal que a Europa, no âmbito dos seus valores, soube construir.

Em 1991, (cinco anos após a adesão de Portugal) num artigo publicado em Vence, a 28 de Abril, intitulado “A Europa e as próximas eleições”, Eduardo Lourenço registou a seguinte reflexão: “E todavia, tudo se passa, entre nós, como se a europeização de que somos objecto e agentes, que nos envolve e nos arrasta como a todos os membros da Comunidade, em nada alterasse nem os comportamentos políticos tradicionais, nem a leitura que fazemos da nossa situação no novo quadro europeu, como se não tivéssemos nenhuma relação com ele”. Linhas abaixo, escreve “é na óptica mais provincial que é possível conceber que a luta eleitoral se desenha”.

A sábias palavras, recolhemos em silêncio. A este desencanto de Lourenço, associo o meu, mas também a minha esperança. Sou uma euro-optimista, afinal.