O Descanso

No tempo em que muito do que entrava em casa era transportado aos ombros, havia a necessidade de, ao longo do percurso, arriar, de vez em quando, a carga por alguns minutos, para recuperar energia e prosseguir a marcha.

Surgiram assim, em locais estratégicos, os descansos. Numa parede, rompia-se uma abertura em forma de meia-lua, a uma altura ideal para descarregar um cesto, fardo ou outro qualquer volume.

No Caminho das Romeiras, nas imediações da Igreja de Santo António, encontra-se, em bom estado de conservação, um dos poucos descansos que escaparam à implacável demolição. Um outro resiste, mas parcialmente adulterado, no Caminho do Lazareto.

De muitos não ficou qualquer registo. Foram demolidos, quando se construíram novos edifícios, sem sequer se ter a preocupação de tirar simples fotografia para memória.

Descanso. Caminho das Romeiras, Santo António, Funchal. Foto: NV

O descanso de Santo António é um exemplar bem preservado desses úteis e ansiados lugares para quem, por caminhos e ladeiras, transportava aos ombros pesadas mercadorias.

Lembro-me de ver o distribuidor de pão, popularmente também chamado de padeiro, a arriar o cesto coberto com o pano branco num outro descanso, já desaparecido. Havia quem o esperasse ali para comprar o pão fresco.

O descanso era, inevitavelmente, um lugar de sociabilidade, propício para uma conversa acerca de novidades presenciadas ou conhecidas em outros caminhos ou uma bebida revigorante na mercearia ou taberna das redondezas.

Em frente da Igreja Velha de São Martinho havia um descanso num muro ocre, de superfície rugosa. Aqui aconteceu uma cena miraculosa, segundo minha tia Matilde (a Matildinha), que nasceu e, por muitos anos, morou neste sítio. Contou-me que dois carregadores, que levavam para o Estreito, uma caixa de madeira com uma escultura de Nossa Senhora, pousaram, ao fim da tarde, o volume no descanso e dirigiram-se, de imediato, para a taberna.

Quando pretenderam retomar o percurso, a caixa pesava tanto que nenhum conseguiu levantá-la. Decidiram então ali pernoitar, mas logo um se lembrou de tentar colocar a carga em segurança, no interior da Igreja de São Martinho. Com este propósito, deitaram mãos à caixa e, para sua surpresa, conseguiram com facilidade deslocá-la, pois tinha o peso normal.

No outro dia, aprontaram-se, bem cedo, para se porem a caminho. Mas, quando um deles experimentou colocar a caixa sobre os ombros, não conseguiu levantá-la, devido ao peso excessivo. Várias tentativas foram feitas, mas sempre sem sucesso. A caixa parecia grudada no pavimento da Igreja. Interpretando esta situação como sinal divino anunciador de que a escultura de Maria pretendia ficar naquele templo, logo os dois homens deixaram ali a encomenda que transportavam, tendo um deles dito, com satisfação, que a falta de força, no dia anterior, para transportar caixa tão pesada, não fora dos muitos copos de vinho que havia tomado. Convicto, afirmava que o ocorrido tinha a mão de Deus.

Verificou-se depois que, no interior da caixa, estava uma estátua de roca, daquelas que são vestidas com trajes de tecido, para serem colocadas nos altares ou saírem nas procissões, de modo que a carga era leve.

Esta história irreal, há muito ouvida, é aqui lembrada para, afinal, documentar que estes descansos encerram vivências e vozes de um passado já distante, quando o transporte de mercadorias se fazia aos ombros em longas e difíceis jornadas, por caminhos íngremes e veredas tortuosas.

O descanso do Caminho das Romeiras é um exemplar raro desse mobiliário urbano com carácter utilitário, que existiu em muitas localidades da ilha da Madeira. Apesar de, na actualidade, não ter o préstimo para que foi construído, deve, todavia, ser preservado como Património Cultural da freguesia de Santo António. Constitui memória singular de um tempo, uma actividade e um sítio.