A Pessoa Indicada (2018) – José Viale Moutinho

Leonor Coelho, professora universitária na UMa.

 

José Viale Moutinho estreou-se na escrita literária em 1968. Feitas as contas, em 2018, comemoram-se cinquenta anos de uma carreia longa e internacionalmente reconhecida. É certo que a qualidade da obra de um escritor não se compagina com o número de livros que publica. Numa época de ‘bibliometria’ ostensiva, o deslumbramento pelo sucesso editorial está ao virar da esquina. Contudo, as visibilidades ocas e os desassossegos desta natureza não são o apanágio deste autor.

A(s) modernidade(s) da sua escrita têm captado a minha atenção por diversas razões. Regra geral, alguns livros são abordados em contexto universitário. Por questões de investigação científica, opto, quase sempre, por traços que problematizem efeitos distópicos, culturas e(m) conflito e viagens pelos desassossegos da contemporaneidade.  Tenho, assim, tratado a poesia, a contística e a escrita dramatúrgica.

Pela diversidade de géneros literários, pelas inúmeras propostas editoriais, pelo diálogo intertextual com outras vozes da cultura contemporânea, a obra de Viale Moutinho pode ser lida por recetores de várias faixas etárias com exigências diversas.  Alguns leitores podem percorrer ao acaso textos da literatura infantojuvenil, da poesia, da ensaística ou da narrativa. Outros podem mover-se por entre as linhas da sua produção detendo-se, por exemplo, na riqueza de uma escrita inquietante e irónica ou no diálogo com outras linguagens artísticas, em particular com a ilustração e a pintura. Realço, ainda, os jogos de decifração espaço-temporal, onde não falta a crítica social e política, o lado mordaz de dizer (também) o indizível, bem como a capacidade efabulatória das suas narrativas. Destaco a poesia do continuum cuja vírgula, em final de cada poema, salienta o que esse texto encerra e o que virá inaugurar a próxima construção poética. Sugiro, de igual modo, a leitura (e a investigação) pelos escritos ligados à vizinha Espanha.

Hoje aponto algumas linhas que se espraiam no seu último livro de poesia: A Pessoa Indicada (novembro 2018). Detenhamo-nos na epígrafe que abre o livro: “si j’écris, c’est disons pour ouvrir une porte” (Guillevic, Art Poétique). A arte poética de José Viale Moutinho abre-se, então, a múltiplas decifrações e, numa estética de adivinhação do que lhe vai na alma, a voz do texto elabora uma arquitetura da palavra sentida.

Dialogando, de certo modo, com Antero de Quental em Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, o sujeito poético sente-se, de igual modo, um ‘vencido da vida’.  Recuperando a imagem de um cavaleiro negro, qual Eurico de Alexandre Herculano, José Viale Moutinho oferece ao leitor um dos livros mais desencantados da sua produção poética. Ao jeito de António Nobre, em , a poesia ocupa um espaço essencial para dizer o ser à deriva e “cada gesto do homem atormentado” (p. 66). Outros tópicos revelam a atualidade dos nossos dias. Atento à cultura da superficialidade e ao seguidismo social, o eu olha desenganado para a cidade  –  ora vítima de efeitos climáticos, ora varrida pela turistificação dos nossos dias  –  e para os ‘não-lugares’ da era do vazio. A memória esquecida na carnavalização dos tempos atuais, a cultura da maledicência e dos amores desencontrados, os meios inóspitos e asséticos, os riscos da repetição do erro ou as dependências de um mundo “aparelhado” (p. 19) são problemáticas convocadas em tom de profundo desapego à Utopia. As múltiplas dissonâncias apontam para a mecanização do gesto valorizado numa época da “eficácia própria” (p. 21) e da hodiernidade da liquefação do afeto. “[S]entados//a mesma mesa de café” (p. 30), as tardes sombrias levam à lúcida e amarga constatação: “só a mesa cresce, ocre, vazia,” (p. 60). Apesar da riqueza do lugar, a ilha permanece indiferente, “rendilhad[a] de esquecimentos” (p. 51).

Publicado pela Companhia das Ilhas, o livro deixa-nos, de igual modo, registos de uma Escrita do Eu que vê a casa vazia. Na Ilha e no Douro, “nesses desenhos autobiográficos em risco//de colisão (p. 25), a voz do texto parece ‘arrumar’ a escrita. Desenhando “o livro dos livros” (p. 37), qual cântico dos cânticos, neste caderno íntimo em jeito testamental, o sujeito prefere “traduzir-se// em cinzas o mais rapidamente possível” (p. 45), apesar de negar a despedida. A Pessoa Indicada permitirá, pois, ao leitor repensar a inexorabilidade do Tempo e a circularidade da Vida: “e se vou perdendo uma ilha do arquipélago//emerge uma outra pátria de anjos inquietos, (p. 77).

Abrindo “[a] arca do tempo” (p. 50), a voz do texto diz a Memória, reconfigura dados memorialísticos e baralha os “elementos essenciais da paisagem” (p. 54) destas cartografias da Disforia.

 


———

*Leonor Coelho

Professora na Universidade da Madeira

Investigadora no Centro de Estudos Comparatistas