O pior (ainda) está para vir?

Conforme o Relatório da Democracia 2018, o segundo relatório anual do projecto Variedades da Democracia (V-Dem), concretizado através de uma rede global de investigadores e peritos com sede na Universidade de Gotemburgo, que avalia a qualidade da democracia em 201 países de todo o mundo, o declínio dos indicadores democráticos afecta já 2,5 mil milhões de pessoas.

Esta conclusão é partilhada pela Organização Não Governamental americana Freedom House, que no seu relatório mais recente, relativo ao estado da democracia em 2017, evidencia que 71 países sofreram degradação dos direitos políticos e liberdades civis e apenas 35 registaram melhorias.

Ambos os relatórios concluem que nos últimos anos grandes países como os EUA, Rússia, Turquia, Brasil e Índia conheceram retrocessos democráticos. E o projecto  V-Dem aponta que, pela primeira vez, desde 1979, o número de países que se desviam da democracia (24) é o mesmo que o número de países que apresentam avanços. Segundo este projecto, a característica mais visível da democracia – a realização de eleições- permanece robusta por todo o mundo, mas a erosão democrática é patente a vários níveis: na diminuição da liberdade de imprensa, da
liberdade de expressão e do Estado de direito.

Um retrocesso e declínio que, sublinha, ser particularmente perceptível nas três
regiões com os maiores níveis da democracia: Europa Ocidental e América do Norte, América Latina e Caraíbas e a Europa Oriental. E baseando-se na classificação de regimes políticos do mundo – democracias liberais, democracias eleitorais, autocracias eleitorais e autocracias fechadas (ditaduras) -, o estudo conclui que nos últimos dez anos (2007-2017) 20 países caíram  uma categoria. Entre eles 4 países da União Europeia que perderam o estatuto de democracia liberal e são agora consideradas democracias eleitorais: Hungria, Polónia, Lituânia e Eslováquia.

Paralelamente a este retrocesso democrático, os processos eleitorais, também um pouco por todo o mundo, têm vindo a ser assustadoramente condicionados por mecanismos de manipulação através das chamadas redes sociais (Facebook, Whatsapp, etc). Exemplos disso mesmo são quer  as eleições presidenciais americanas que culminaram com a vitória de Donald Trump, quer as também eleições presidenciais brasileiras que fizeram eleger Jair Bolsonaro, quer o referendo britânico, o Brexit, que determinou a saída do Reino Unido da União Europeia.

E se é verdade que as denominadas “fake news”, as falsas notícias, ou, para sermos mais precisos, as mentiras, porque é disso que se trata verdadeiramente, constituem uma realidade bem antiga no mundo, é inegável que o fenómeno tem hoje uma dimensão nunca antes vista, planetária, em consequência da sua disseminação pelas redes sociais, com consequências verdadeiramente assustadoras.

Não só por esse facto, mas muito também porque essa passou a ser uma arma a que responsáveis políticos, de modo particular o presidente dos EUA, passaram a recorrer a toda a hora.

Uma prática que no caso de Trump começou bem antes da sua ascensão à Casa Branca, quando, por exemplo, pôs em causa a nacionalidade americana do seu antecessor Barack Obama. E a que, investido das funções presidenciais, recorre sem cessar, não só para insultar tudo e todos, mas igualmente para espalhar um clima de medo e de ódio, propício para o desencadear de fenómenos de violência, como o massacre numa sinagoga na Pensilvânia ou o envio, pelo correio, de bombas artesanais, tendo como destinatários destacados políticos do partido Democrata, como os exs – presidentes Bill Clinton  e Barack Obama, a ex-secretária de Estado e ex-candidata presidencial Hillary Clinton, o actor Robert de Niro e a estação televisiva CNN.

Difundir mentiras e espicaçar o medo entre os eleitores norte-americanos voltou a ser o principal instrumento a que Trump recorreu ao longo da campanha que antecedeu as eleições intercalares para a Câmara dos Representantes e para o Senado dos EUA. A dimensão da desinformação, da propagação de mentiras foi de tal ordem que um anúncio da campanha de Trump foi recusado não só pela NBC, pela CNN e pelo Facebook, mas pela própria Fox News, o canal de “informação” que é uma espécie de megafone do presidente americano. O anúncio em causa mostrava imagens da caravana de migrantes sul-americanos que se desloca no México, rumo à fronteira dos EUA, que Trump apelida de invasão do país, com as de um mexicano que estava ilegal nos EUA e foi condenado em Março pelo assassinato de dois polícias e simultaneamente distribuía acusações sem fundamento contra o partido Democrata.

O método foi, como já referimos, igualmente utilizado no referendo  britânico, sobretudo através da participação em larga escala de uma  empresa analítica, a Cambridge Analytica, que ao espalhar nas redes  sociais um conjunto alargado de desinformação contribuiu decisivamente  para a vitória do Brexit.

Num caso (eleições americanas de 2016) e no outro (Brexit) há um nome  em comum: Steve Bannon, o ideólogo e estratega da eleição de Trump  desse ano. Bannom que haveria de afastar-se posteriormente de Trump,  mas não dos seus objectivos políticos mais gerais, a criação de um  movimento nacionalista mundial de extrema-direita. Bannom, viria, aliás, a estar envolvido nas eleições presidenciais  brasileiras, tendo, de resto, se encontrado com um dos filhos  (Eduardo), do novo presidente, Jair Bolsonaro que, como é do domínio  público, fez uma campanha essencialmente a partir das  redes sociais,  nomeadamente o Whatsapp, instrumento privilegiado para espalhar toda a  espécie de falsas acusações, relativamente ao seu opositor Fernando  Hadadd, ao mesmo tempo que apelava aos sentimentos mais básicos do ser  humano, ao medo, ao ódio, à discriminação, à intolerância.

A desinformação, a manipulação dos factos têm tido sucesso porque,  convenhamos, há, tem havido, um terreno fértil para a sua propagação.

A eternização dos problemas sem solução à vista, a degradação de  condições sócio-económicas, a descredibilização dos ataques políticos,  a manutenção do “status quo”, a convicção de que o “sistema” não dá  respostas, a proliferação de fenómenos como a corrupção e a  insegurança, de que o Brasil é porventura o exemplo mais gritante,  acabam por ter naturalmente responsabilidade nestes resultados
preocupantes. Mas, eles espelham também o que a filósofa alemã Hannah  Arendt definiu no seu livro “As origens do Totalitarismo”, como o  “súbdito ideal do regime totalitário”, “aquele para quem deixou de  existir a diferença entre facto e ficção e entre verdadeiro e falso”.

Indesmentível é a circunstância de simultaneamente ser crescente o  número de líderes autoritários mundiais: Trump e Putin à cabeça, mas  também o turco Erdogan, o filipino Duterte, o húngaro Órban, o  venezuelano Maduro, o norte-coreano Kim-Jong-Un, o polaco Kaczynsky e  agora o recém-chegado Bolsonaro.

Num livro, “Fascismo-Um Alerta” que acaba de ser editado em Portugal,  a ex-secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright alerta para o  que propõem os partidos da extrema-direita que vão ganhando força na  Alemanha, na Grécia, na Suécia, na Finlândia, em França, na Aústria,  nestes termos: “Nos programas e declarações destes partidos ouvimos  ecos de temas fascistas clássicos: medo da decadência e do declínio;  afirmação de uma identidade nacional e cultural; uma ameaça à  identidade nacional e à boa ordem social por parte de estrangeiros não  assimiláveis; e a necessidade de maior autoridade para lidar com estes  problemas.”

Sintomaticamente na epígrafe do seu livro Albright cita uma frase de  Primo Levi: – “Todas as eras têm o seu fascismo” – para posteriormente  referir que “temos razões para estar preocupados com a variedade que  se está a juntar de correntes políticas e socais que nos golpeiam  actualmente – correntes impulsionadas pelo lado negro subterrâneo da  revolução tecnológica, os efeitos corrosivos do poder, o desrespeito  do presidente americano pela verdade e a aceitação crescente de que os  insultos desumanizadores, a islamofobia e o antissemitismo se situam  dentro dos limites do debate público normal”, acabando por concluir  que “ainda não chegamos lá (à opinião de Levi), mas estes parecem ser  já sinais ao longo de uma estrada para regressar a uma era em que o  fascismo encontrou alimento para si e as tragédias individuais se  multiplicaram por milhões”.

E ao contrário do que o leitor possa dar por adquirido, Portugal não  está imune a que fenómenos desta natureza se possam propagar e ganhar  espaço. Com efeito, bem recentemente, o “DN” lisboeta elaborou um  dossier sobre a difusão de “fake news” no nosso país, em que revelava  que, só no Facebook, mais de dois milhões seguem sites portugueses de  desinformação, num negócio que classifica de rentável e que permite um  retorno de milhões de euros pagos pela publicidade do Google. Entre as  mentiras  que, por essa via, têm sido espalhadas nos últimos tempos há  um pouco de tudo: desde um jantar em casa de José Sócrates em que a  nova procuradora – geral da República, Lucília Gago, tinha marcado  presença, a um relógio de 21 milhões usado pela líder do Bloco de  Esquerda, Catarina Martins, e até à afirmação  de que António Costa  iria processar o fotógrafo da agência Reuters que havia fotografado a  deputada Isabel Moreira a pintar as unhas no Parlamento.

A difusão, a propagação de mentiras e falsidades não se limita a sites  criados com objectivos políticos claros, em que curiosamente os  principais alvos têm sido Rui Rio e Marcelo Rebelo de Sousa, envolveu  já até um sindicato da PSP que, em resposta às críticas contra a  publicação de fotos de três fugitivos acabados de capturar, algemados  e sentados no chão, usou imagens de idosos alegadamente assaltados e  espancados pelos tais fugitivos, que não eram reais, na medida em que  não eram sequer de idosos portugueses.

Significa tudo isto que, ao contrário do que muita gente possa pensar,  o populismo não é um fenómeno que não nos possa atingir, enquanto país  e enquanto povo. E há, tem havido, comportamentos de quem exerce  funções públicas que só contribuem para que esse caldo de cultura se  possa sedimentar e engrossar. São dessa natureza os processos que  envolvem a investigação a moradas falsas de deputados à Assembleia da  República e o registo de presença do deputado e secretário-geral do  PSD, José Silvano, em reuniões em que esteve ausente. E que no auge da  polémica que o envolve teve a lata de registar a sua presença numa  reunião da Comissão de Ética e Transparência e abandoná-la de seguida!

Por isso, e por este andar, não se admirem que um dia tenhamos de  lidar com o Salvini ou o Bolsonaro português. Partido até já existe.  Com um nome (Chega) que diz tudo. E pessoas disponíveis a acreditar no  que quer que seja, que não querem mais saber dos factos, mas apenas de  ver reforçadas as suas convicções, também não faltam.
Em certo sentido são muitos daqueles que José Pacheco Pereira designa  pelos “nossos bolsonarinhos e trumpinhos” que não mostram especial  preocupação, bem pelo contrário, com a vitória dos “ditadores com  votos, mas sem lei”. Que não têm pejo em assumir que, entre Bolsonaro  e Hadadd, não optam, como fizeram Assunção Cristas e Paulo Portas.
Quiçá, porque, lá no fundo, simpatizam com os grupos religiosos  evangélicos que se bateram por Trump, nos EUA, e por Bolsonaro, no  Brasil. Às tantas, considerarão uma blasfémia que Bernardo Pires de  Lima investigador universitário, muito longe de poder ser considerado  um perigoso esquerdista, tenha escrito no “DN” de Lisboa: “comparado  com Bolsonaro, Trump não passa de um menino de coro”.

Claro que há também aqueles que vão repetindo até à exaustão a velha  cantilena em que ninguém pega, de referendar a Constituição, agora sob  a capa de “ficção”, como a solução milagrosa para o país, ao mesmo  tempo que desvalorizam por completo os comportamentos aviltantes da  classe política de que foram longamente parte integrante, assumindo a  postura de idiota optimista, como se não tivessem qualquer  responsabilidade na situação presente.

Uma situação que pode ainda se tornar mais cinzenta após as eleições  europeias de Maio do próximo ano.

Na verdade, no horizonte avizinha-se um acentuado crescimento dos  chamados euro-cépticos que já detêm, aliás, um peso significativo no  parlamento europeu. A probalidade de uma frente anti-europeia liderada  por Salvini, Órban e Le Pen vir a condicionar fortemente qualquer  evolução positiva no seio da União Europeia é uma forte possibilidade.
E, por outro lado, o eurodeputado bávaro Manfred Weber que o Partido  Popular Europeu, de que o PSD e o CDS fazem parte, escolheu para  candidato a novo presidente da Comissão Europeia, conhecido por ser o  maior aliado de Órban no Parlamento Europeu e por, em Junho de 2016,  ter pedido à Comissão para aplicar sanções a Portugal e Espanha, no  momento em que os orçamentos de ambos os países estavam a entrar em  linha com os limites previstos nas regras europeias, não pode  igualmente deixar de constituir um acrescido sinal de inquietação.

Não admira por isso que numa entrevista concedida ao “Público” a 6 de  Novembro corrente, o diplomata Francisco Seixas da Costa, profundo  conhecedor da realidade europeia, após sublinhar que não há “uma  liderança europeia” e de ter aludido ao “tempo dramático em Itália”,  tenha concluído: “É preciso ser-se muito optimista para se ser  optimista”.

O panorama não é, por conseguinte, animador. Mas nada é pura e  simplesmente inevitável.

O cidadão, os cidadãos podem individual e colectivamente contribuir  para evitar que o absurdo se torne no novo normal.

Desde logo, escrutinando tudo o que vêem, ouvem ou lêem. Procurando  diversificar as suas fontes de informação. Não lendo ou ouvindo apenas  as opiniões das pessoas ou correntes de opinião com que se  identificam. Usar do espírito crítico para com tudo e todos, por forma  a serem capazes de separar o trigo do joio. E exercer, em todas as  circunstâncias, os seus direitos de cidadania, bem como cumprir com os  seus deveres.
Um mundo, um país e uma região melhores também dependem de si.

* Por opção, o presente texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

Post scriptum:  1) Resposta a um panfletóide: Um pretenso blog anónimo curiosamente surgido após o abandono do poder por parte da criatura  responsável pelo PAEF de triste memória, sentiu-se incomodado com o  meu último artigo neste espaço e o escriba de serviço resolveu tecer  insinuações e produzir falsidades. Assim, e para que conste, deixo  claro que não me envergonho de ter pertencido à UPM. Desde logo porque  a mesma e os seus militantes nunca puseram, nem mandaram colocar  bombas, nem foram coniventes com o seu uso, no pós – 25 de Abril de  1974, por parte da organização terrorista Flama. O terror e o medo de  que alguns falam, como tendo sido obra da esquerda, foi esse. O resto  foram, tão somente, excessos próprios de um qualquer período  revolucionário.
Por outro lado, é falso que tenha sido professor, muito menos sem  habilitação própria. Por isso, nunca poderia ser beneficiado com um  decreto legislativo, uma espécie de fato à medida, que servia para  acomodar quem se encontrava nessa situação.

Trabalhei de facto na então Emissora Nacional, mas num curto período  posterior a 25/4/74, tendo integrado a lista de 5 trabalhadores que,  aquando da respectiva ocupação em 7 de Outubro de 1975, os flamistas  pretendiam sanear. E, na sequência do 25 de Novembro de 75, fui  afastado dos serviços informativos e colocado na prateleira.

Finalmente, e ao contrário de muitos que proclamam feitos que ninguém  conhece, tenho muita honra em ter pertencido ao quadro de redactores e  colaboradores do semanário “Comércio do Funchal” e subscrito a “Carta  ao Governador” de Abril de 1969, em que 39 cidadãos aqui residentes  reivindicavam liberdade, democracia e autonomia para esta terra e para  as suas gentes.
Ah!, já agora um pequeno pormenor: já estou reformado. Fi-lo no tempo  legalmente estabelecido, sem mordomias, nem acumulações.

2) – “Bacalhau a pataco”: A redução no preço dos passes sociais e das  creches, os novos cheques para os bananicultores, e o mais que ainda  estará para vir, faz também parte da ementa do tal partido? Ou é mera  coincidência?

3) – “Guerra empresarial”: Afinal, parece que a “guerra” entre  empresas e empresários, que se avizinha na disputa pela liderança da  ACIF, morreu na praia. O que significa que o Grupo Pestana venceu o  Grupo Sousa. E nós a pensar que eles até se davam bem. Agora, a  conversa de que nunca houve política na ACIF, só os mais distraídos é  que, porventura, acreditarão.

4) – Vergonhoso: É o mínimo que se deve dizer do modo como os  sucessivos governos regionais trataram o maestro Victor Costa. E enoja  saber que o arrastar da aquisição do seu espólio se ficou a dever a  questões financeiras, quando esse mesmo poder se fartou de desbaratar  dinheiros públicos com a maior irresponsabilidade e sem vergonhice.