João Pina Gouveia: o dramaturgo madeirense que inventou o primeiro avião português

A Ilha da Madeira só teve um aeroporto em 1964, mas isso não impediu o madeirense de se entusiasmar pela aviação. O pioneiro aviador José Costa sonhava com voar no início do século XX, ao ver as gaivotas a passar por cima de si, no Caniço. Mal teve idade e dinheiro José Costa comprou um avião nos Estados Unidos.  Mesmo antes de ver um avião a voar, e muito menos antes de qualquer visita aérea à Madeira tivemos outro “maluquinho da aviação”. O dramaturgo e inventor João da Mata Pina Gouveia, que nasceu no Funchal a 8 de Fevereiro de 1880. Já a viver no continente, montou a primeira oficina aeronáutica portuguesa em 1907. Era um anexo à sua casa onde fabricava papagaios e pequenos aeromodelos.

Foi sócio fundador ao Aeroclube de Portugal, onde concluí o meu brevet de piloto privado, 90 anos depois. Foi o primeiro a desbravar uma área de conhecimento onde reinava o empirismo, e a incerteza.

De recordar que não era evidente sequer que os aviões viessem a servir para alguma coisa, e muito menos que dessem dinheiro. O transporte de passageiros só arrancou em força no pós SEGUNDA guerra, usando pilotos, pistas em bases militares e excedente de aviões de transporte militar (como os DC-3 dos Transportes Aéreos Portugueses). Nem forças aéreas havia sequer em muitos países onde a aviação brilhava! A atual Air Force americana (USAF) era durante a guerra a UASAAF – United States ARMY Air Force. Os pilotos portugueses da Primeira Guerra (recomendo o excelente livro “Heróis do Ar”, de Jaime de Oliveira Martins) voaram aeronaves fornecidas por outras nações beligerantes, no campo de batalha.

Era “sexy” voar na “Era de Ouro” que durou até à eclosão da Segunda Guerra, com o voo transatlântico do nosso conterrâneo José Costa a colocar o ponto final. Estavam sempre a bater-se records, havia air shows muito populares com prémios para velocidade, distância, atravessar o canal da Mancha, etc. Na década de 30 a aviação até aqui na Madeira era popular. Um jornal trazia aos domingos umas páginas com fotografias do que se passava lá fora, tipo casamentos reais, e sempre se viam feitos da aviação.

Mas regressemos à primeira década do século XX. Há que contextualizar o que era a realidade da aeronáutica nestes primórdios. A Revolução Industrial – a qual passou ao lado Portugal – começava a verter a cultura de motorizar tudo o que fosse possível, a menores escalas. De certo modo, a mesma lógica da miniaturização da eletrónica que começou nos anos 80. A engenharia mecânica, especialmente num país pouco industrializado, era uma arte mais próxima da bruxaria do que da ciência. A fiabilidade dos motores e das estruturas das aeronaves dessa altura muito deixavam a desejar. Eram feitos de pau e tela, para poderem sair do chão com motores de ínfima potência. A comportamento dos aviões só podia ser aferido no ar, e o construtor era muitas vezes o piloto de testes. Um avião bem desenhado poderia ser um acaso de sorte, ou a fatalidade do piloto, porque não havia túneis de vento, simuladores, dados empíricos para análise, nem telemetrias sequer. A meteorologia aeronáutica era rudimentar, pouco mais que ver a direção do vento e se ia chover. Só nos anos 80 é que se compreendeu o fenômeno dos microbursts. O célebre voo dos irmãos Wright em 1903 (incorretamente considerado como o primeiro voo motorizado) se tivesse começado a partir de uma janela de um Airbus A380 mal chegava à ponta da asa. Uma “rabanada” de vento tanto servia para duplicar o alcance do voo, como para atirar o avião ao chão. Os ailerons do Wright Flyer eram improvisos engenhosos, o piloto puxava um cabo que torcia a asa (hoje considerado futurista – morphing). Flaps, slats, e outros dispositivos hiper-sustentadores vieram mais tarde.

Existe pouca informação acerca do nosso João Gouveia, maluquinho das máquinas voadoras, mas publicações internacionais da época relatam os seus feitos. Em 1909 apresentou um plano de sua autoria para construir a primeira aeronave Portuguesa. Por falta de verba apenas conseguiu concluir as asas e a fuselagem, apesar de o ter começado com o apoio da Marinha, que lhe concedeu algum dinheiro e acesso ao Arsenal. Se tivesse tido sucesso logo ali, teria realizado o primeiro voo de sempre em território Português, honra que acabou por ser atribuída a um francês. No ano seguinte recebeu então fundos mais avultados do Ministério da Guerra para o concluir, e em junho de 1911 estava pronto a voar. O avião de João Gouveia era um monoplano de 9 metros de envergadura e pesava 300kg, segundo o livro “Aeroporto da Madeira – A história de um sonho”, publicado pela ANAM. A propulsão vinha um hélice Derzewitch na parte da trás (configuração pusher) alimentada por um motor de Anzani 30 de cavalos. Foi concluído num hangar no Seixal, zona considerada ideal para testes de voo. Em Janeiro de 1912 fez-se então ao ar pela primeira vez. Infelizmente problemas encontrados com a ligação do motor ao hélice na fase de descolagem resultaram em danos substanciais na aeronave, e o projeto foi definitivamente abandonado. A sua inclinação monárquica não o tornava popular, até à sua morte em 1947 apenas há registos na área do aeromodelismo e alguns artigos sobre balões. O descartar institucional de dar continuidade ao projeto de João Gouveia ilustra bem a falta de visão e ambição de Portugal.

Poucos inventores desta altura terão feito dinheiro sério com a sua atividade, mas alguns ficaram para a posterioridade, como o Santos Dumont, devidamente imortalizado no aeroporto doméstico do Rio de Janeiro, etc. A Rua João Pina Gouveia em Queluz é-lhe dedicada, porque lá residiu.

João Gouveia merece uma homenagem na Madeira, também.