Saúde na Madeira à beira da “ingovernabilidade”, listas de espera “aumentam” e há “saída contínua de médicos”

Pedro Freitas
Pedro Freitas: “Quando alguém tem opinião diferente, discordante ou mesmo quando aconselhamos algo diferente em relação ao que a secretaria diz, ignoram, viram as costas. Foto Rui Marote

“Proximidade e diálogo”. É assim, com mensagem direta de estar perto dos serviços de Saúde e de falar com os profissionais, que o secretário regional do setor tem vindo a encetar uma nova caminhada, neste percurso, difícil diga-se, do seu mandato, enquanto terceiro titular da pasta nos três anos de governação regional liderada por Miguel Albuquerque. Se essa proximidade e diálogo correspondem a uma melhor e mais rápida resposta aos utentes, é outra questão que ainda está para ver. Para ver, sobretudo cá fora. Lá dentro, para quem trabalha no SESARAM, parece estar mais do que visto, os problemas mantêm um elevado nível de gravidade, as medidas avulso não têm resolvido grande coisa, na ótica da classe médica, neste particular representada pela Ordem e pelo seu presidente do Conselho Médico Regional, Pedro Freitas. “Saúde à beira da ingovernabilidade” e já existem reações, nos fóruns da classe, em que se admite a vontade de convocar RGM (Reuniões Gerais de Médicos). Dito assim, é de preocupar.

Saúde “igual ou pior” mas também “há aspetos positivos”

A Saúde, na generalidade, “está igual ou pior”. Mas há aspetos positivos, “a possibilidade do SESARAM poder contratar, de imediato, os médicos para as áreas mais necessitadas assim que concluem a especialidade. Também a certificação de qualidade de alguns serviços, que não é mais do que o reconhecimento da qualidade no desempenho dos profissionais envolvidos, reconhecendo qualidade nos procedimentos, no âmbito das suas funções. E a melhoria no acesso a medicamentos e outros consumíveis, apenas com falhas temporárias, mas com uma política mais consentânea com as exigências, embora eu até ache que os madeirenses estão, nesse aspeto, a recorrer mais ao privado”

Uma relação difícil

A relação entre Pedro Ramos e o médico que está à frente deste orgão representativo de classe nunca mais foi a mesma desde os chamados “estados gerais” do PS-Madeira, onde tanto Pedro Freitas como o Bastonário, marcaram presença num debate sobre Saúde. O secretário não gostou mesmo nada e o ambiente, que antes não era brilhante, ficou ainda mais crispado. Ao Funchal Notícias, Pedro Freitas diz, sem hesitações, que se fosse hoje “participaria naquele debate, como de resto o faria em relação a outro partido qualquer”. Faz questão de lembrar, para quem porventura possa ainda ter dúvidas, que lidera “um orgão que representa a classe médica”, refere ter sido “eleito e não indigitado”, como tal aguarda serenamente que “o secretário marque uma reunião para abordar questões que têm a ver com os médicos e a Saúde na Madeira”, independentemente das divergências que possam existir, relativamente à “defesa dos interesses de quem represento”.

Indigitado sem receber um eleito

hospital
“Continua a saída contínua de médicos do SESARAM, foram três no mês de agosto, na Cirurgia Vascular, na Oftalmologia e na Anestesia/Cuidados Intensivos”.

Acha curioso que um secretário que tenha sido indigitado para um cargo “recuse falar com o representante da Ordem, um eleito, sufragado pelos colegas”. Para já, tem uma postura de tranquilidade, diz que a Ordem “vai continuar a falar com os médicos, a promover a saúde e à espera que o secretário nos chame para falar de saúde, estamos preparados para isso”. Volta atrás para recordar que recebeu 116 mensagens de apoio, por parte de colegas, para expressar um pouco a situação de reconhecimento de classe, além da legitimidade própria que o mandato lhe confere. “Continuamos ativos e sempre disponíveis para falar com o secretário da Saúde”.

É a este propósito que recorda o trabalho feito na Ordem, na Região, promovendo ações de formação. Revela a realização, em outubro, de um curso de formação de formadores de Medicina, acreditado pela Europa, com preletores nacionais. Diz que “podia ter sido organizado pela secretaria ou pela direção clínica do SESARAM, mas terá organização a Ordem. É um curso pós-graduado, destinado a orientadores de formação em Medicina Geral e Familiar, organizado em vários níveis, que recentemente foi adaptado a todas as especialidades.

O local da formação traz outra curiosidade: “Pedimos uma sala ao SESARAM, mas essa solicitação foi recusada, alegando que o espaço estaria ocupado. Será feito no edifício da Reitoria da UMa e aproveito para agradecer ao reitor a disponibilidade manifestada”. Destaca, ainda, “outro curso realizado na Ordem, em outubro passado, também com formador do continente, dedicado à estatística na ótica médica e, também, outras sessões de caráter mensal realizadas pelos diferentes serviços hospitalares”.

Secretaria avessa a opiniões e conselhos diferentes

A Saúde, na Região, é um setor que envolve enorme complexidade. É assim, sempre foi assim, há-de ser assim. Envolve pessoas, mas sobretudo envolve sensibilidades específicas e tem a ver com a saúde de cada um dos utentes. Não é por acaso que já vai no terceiro secretário deste mandato do Governo Regional, que termina no próximo ano. Pedro Freitas diz que “falta paz à Saúde da Madeira”, que o estado de coisas chega ao ponto de “quando alguém tem opinião diferente, discordante ou mesmo quando aconselhamos algo diferente em relação ao que a secretaria diz, ignoram, viram as costas. Há dificuldade em aceitar a pluralidade de opiniões, de opções”.

Estamos num momento de aparente mudança de estratégia da tutela. Números, reuniões, incentivos à fixação de médicos, tudo parece em ambiente acelerado, tendo em vista aquilo que Pedro Ramos já definiu como “proximidade e diálogo”.

Saúde não resolveu o que está para resolver

Pedro Freitas não tem muitas dúvidas sobre os motivos dessa mudança, tem a ver com “o que irá acontecer em 2019”. Quer dizer, as eleições regionais. Reafirma que “a Saúde na Madeira não está melhor e cada vez está mais complicado para resolver os problemas. Há uma clara tentativa de desvalorizar a nossa Ordem, tentando desviar as atenções do que realmente interessa para um conflito político, sem fundamento. O que interessa dizer é a verdade e a verdade é esta. Por mais que a secretaria diga que é por eu estar de um determinado lado, a Saúde não resolveu o que há para resolver, designadamente o acesso às consultas, o acesso aos exames complementares e o acesso às listas de espera, continuam a aumentar. Percebo que se queira educar e impor regras de acesso, mas não é desta forma”.

Restringir análises é criar limitações, a médicos e utentes

A título de exemplo, aponta as recentes diretrizes, que se direcionaram para restringir o número de análises feitas em cada centro de saúde, e que resultam, segundo o presidente do Conselho Médico Regional, numa clara “limitação, tanto ao nível da gestão clínica, por parte dos médicos, mas também ao nível do acesso dos doentes a esses exames. Compreendo a limitação logística e financeira, mas há formas de controlar sem impedir”. Além disso, traça um cenário preocupante do ponto de vista de uma área de grande vulnerabilidade, afirmando que “continua a saída contínua de médicos do SESARAM, foram três no mês de agosto, na Cirurgia Vascular, na Oftalmologia e na Anestesia/Cuidados Intensivos, sendo que este último voltou a ser contratado no regime de prestação de serviços. Veja o caso do colega da Oftalmologia, que eu saiba o primeiro doutorado daquele serviço, que saíu e está no seu direito. Era dever de quem governa evitar essa saída. Na área vascular, passámos a ter dois. É um retrocesso em relação há 15 ou há 20 anos. Relativamente a essa altura, o sistema público dispõe de menos especialistas. E temos uma população que necessita, cada vez mais, de acessos nessa área vascular, principalmente na hemodiálise”.

Défice de médicos de família em 48% no Funchal

Não ficam, por aqui, as insuficiências de um setor nuclear para a sociedade. Pedro Freitas enumera algumas situações, na perspetiva da Ordem, que conduzem a uma outra realidade, menos “cor de rosa”, mais virada para as lacunas efetivamente existentes. E aponta como exemplos: no Funchal, temos um défice de médicos de famílias em 48% da população; Olho para o Porto Santo, onde é colocada uma equipa de emergência no pico de verão, decisão acertada e assumida no tempo do Dr. Manuel Brito, mas vejo a necessidade de ver a ilha do ponto de vista global, ela existe todo o ano. E da mesma forma que a Madeira tem custos acrescidos na Saúde por estar distante do continente, também o Porto Santo, por maioria de razão, tem mais custos por estar distante da Madeira. É preciso um investimento no Porto Santo em matéria de acessos aos cuidados de saúde todo o ano”.

Coimbra deverá deixar de dar apoio na Ortopedia

As falhas, no setor, naquilo que se prende com a falta de médicos e com a fórmula encontrada para suprir dificuldades, constituem aspetos que Pedro Freitas aborda com reservas. “O protocolo assinado com o Governo da República, que prevê a vinda de profissionais para determinadas áreas, está a ser usado já para muitas especialidades, há cada vez mais dependentes do exterior. E parece que vêm aí problemas, uma vez que Coimbra poderádeixar de dar apoio à Madeira na área da Ortopedia, atendendo a eventuais divergências de custos, o que já deveria ter sido pensado há mais tempo, antes de provocar estas divergências”.

Funcionários do SESARAM podem “oferecer” serviços ao SESARAM

Pedro Ramos
Funcionários do SESARAM podem “oferecer” serviços ao SESARAM: “Pode ser a caixa de pandora”.

Fala, também, da alteração de legislação regional, que permite, aos próprios funcionários do SESARAM, prestarem serviços ao SESARAM, o que antes não era possível. Revela que, utilizando esta manobra, pode estar aí a ser trabalhada uma solução para a Ortopedia, com a prestação de serviços aos fins de semana, a preços pagos com valores idênticos aos atribuídos a médicos de Coimbra. “E acho bem que sejam encontrados mecanismos para a prestação do serviço. Alerto, no entanto, para aquilo que pode ser interpretado como uma caixa de pandora, uma vez que pode resultar em legítimas reivindicações por parte de outras especialidades, atendendo a que haverá médicos a ganhar muito mais dos que os outros neste novo enquadramento. São estas leis feitas avulso, publicadas sem ouvir parceiros, que depois tentam alterar por não serem bem ponderadas, criando problemas sem necessidade”.

Fixação de médicos beneficia mais novos, discrimina quem faz formação

A regulamentação para a fixação de médicos é outro problema. “Beneficia os mais novos, mas discrimina quem trabalha e está a dar formação. Ao ponto de estar a ser ponderada, nos fóruns de discussão da classe, a convocação das chamadas rgm (reuniões gerais médicas) para falar sobre o assunto”.

Esta é uma questão que promete agravar, ainda mais, as relações dos profissionais com a tutela. Pedro Freitas vê o futuro, relativamente a esta fixação, num outro prisma, que começa a ser vislumbrado no País: “O verdadeiro motor da fixação de médicos na Madeira será, curiosamente, um aspeto negativo, que é o desemprego médico no continente”.

Privado não é nenhum monstro

O privado/público asssume, sempre, uma questão pertinente quando se aborda a componente médica e a prestação de cuidados de saúde. O novo Hospital ainda está para avançar, o Hospital privado avança a olhos vistos, pelo que, previsivelmente, a oferta privada, no futuro, será alicante. Para médicos e para utentes, os que podem. Pedro Freitas desdramatiza dizendo que “o privado não é nenhum monstro e está ali para ajudar. Penso inclusive que a solução da Saúde, no futuro próximo, passará muito pelo privado. Digo-lhe até que seria desejável, tornando mais célere a realização de procedimentos. E eu só espero que, para bem da nossa democracia, essa contratualização de serviços seja livre, através do concurso para prestação de serviços no exterior”.